sexta-feira, setembro 29, 2006

[citação 10]
ESTE É O DIA NOVO




Este é o dia novo. Sei-o pelo desejo
De o transformar. Este é o dia transformado
Pelo modo como apoio este dia no chão.
Coloco-o na posição humilde dos meus joelhos na terra.
Abro-o com os olhos que retiro de todas as coisas quando os fixo
Na atenção.


Citação >
Daniel Faria (1971-1999), Portugal
> Para o instrumento difícil do silêncio (excerto do poema 4), in Homens que são
como lugares mal situados
, ed. Fundação Manuel Leão, Porto, 1998.
(v. tb. aqui).
[P]

Pintura > Roy Lichtenstein (1923-1997), EUA
> Mirror, 1971, Col. Berardo, Lisboa
> Mirror # 6, 1972, Col. The UBS Art Collection, NY

[Adenda > 30.9.2006]
Conhecido pelas suas pinturas reproduzindo o universo pop da banda desenhada,
Roy Lichtenstein iniciou em 1969 uma vasta série de representações de espelhos.
(Devido a problemas de acesso ao Blogger este post foi lançado inicialmente apenas
com um destes
Lichtenstein Mirrors. Clickar nos "espelhos" aumenta a nitidez).
[R]

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terça-feira, setembro 26, 2006

CAUDA DA EUROPA




Tenho um dedo que adivinha. Na última campanha eleitoral para as presidenciais,
dizia eu na brincadeira que o então candidato Cavaco Silva e esposa viviam fascinados
pela perspectiva de privar com as casas reais europeias.
Meu dito meu feito: o Senhor Presidente da Republica escolheu o Reino de Espanha
para a sua primeira visita de Estado, precedida de entrevista ao El Pais, dando assim
início a uma promissora carreira internacional, à medida das suas novas ambições.
Não se duvida que existam razões nacionais para uma visita ao país vizinho, mas o
certo é que a agenda presidencial consegue deste modo juntar o útil ao agradável.
É de supor que grande azáfama e grande excitação tenham reinado por estes tempos
no Palácio de Belém.
[P]

[Adenda > 27.9.2006]
A Senhora Dona Maria terá sabido em primeira-mão que a Princesa Letizia está
grávida. Este blogue ficou a rebentar de orgulho.
[R]

[Adenda > 28.9.2006]
O povo saiu à rua, em Madrid, para ver passar o Senhor Presidente Cavaco Silva
e esposa, elegantíssimos, como sempre. A seu lado o Príncipe Felipe. Muitos
seguranças, muitos jornalistas. A Princesa Letizia ficou no palácio, talvez enjoada.
[R]

Traje > S/Autor, Portugal
> Manto Real (veludo, seda, lhama, canutilho, fio laminado, lantejoulas, pedraria),
séc. XIX (Col. Paços Reais, Palácio das Necessidades, Lisboa).
[R]

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sexta-feira, setembro 22, 2006

SEMPRE



Acordamos de manhã, fazemos os movimentos do costume. Movimentos que nos
conhecem tão bem, nem precisam que pensemos neles. São automáticos, fazem
tudo sózinhos. É natural, a familiaridade torna-os cúmplices da nossa sonolência.
A água corre na banheira, as gavetas abrem e fecham, os livros aprontam-se para
entrar na pasta, as janelas ficam receptivas. Estamos prontos, as pernas começam
a conduzir-nos para a porta da rua, parece que vamos sair, como nos outros dias,
pelos motivos de sempre. Não sabemos que é tarde, não estamos atentos. E de
repente voltamos a ser meninos, a chorar pela mãe, a procurar um cantinho para
fugir do medo, a querer voltar atrás para refazer aquele instante, mas é tarde.
Tivémos todos, talvez, os nossos anjos, ao menos uma vez na vida. Por vezes não os
escutámos quanto devíamos, eles falam baixinho. Não adormecemos ao seu peito,
não reparámos nos seus olhos e era preciso e já não é preciso porque é tarde. Eles
entram nas nossas vidas, mansos, e um dia abrem as asas e partem, antiquíssimos.
E deixam testamento, sempre.
[P]

Fotografia > Anónimo, Portugal
> Efeito de nuvens, s/d (déc. 1920?), (foto ©
FH/CRO)
[R]

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terça-feira, setembro 19, 2006

APOCALIPSE



Ainda a propósito do discurso do Papa Bento XVI e das respectivas e inteiramente
previsíveis reacções do mundo islâmico, das duas uma: ou o Papa foi ingénuo e
desconhecia que as suas palavras podiam ter o impacto que tiveram, ou então não
foi ingénuo e, nesse caso, jogou uma cartada táctica cuja intenção ainda não revelou
a sua eficácia.
Quando um Papa se põe a citar um texto medieval capaz de ainda hoje ofender o
mundo islâmico, não vamos considerar que a sua citação foi inocente. Trata-se de
um texto do tempo das cruzadas, quando a Europa se inflamava contra os "infiéis".
Será que este facto pode ter sido esquecido por Sua Santidade?
Não há qualquer tensão religiosa apocalíptica, não há qualquer guerra civilizacional
à vista. O que há, isso sim, é uma perigosa exploração das tensões religiosas através
do sistema mediático, à escala global, como se viu no recente caso dos cartoons
dinamarqueses
.
As guerras fazem-se hoje de outra forma e os sistemas de poder religiosos estão,
como estiveram sempre, na linha da frente, motivando ou servindo de pretexto aos
interesses bélicos.
[P]

Pintura >
Francis Bacon (1909-1992), Grã Bretanha
> Study after Velasquez's Portrait of Pope Innocent X, 1953
[R]

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terça-feira, setembro 12, 2006

[citação 09]
PARA CHEGARES AO QUE NÃO SABES



Para chegares ao que não sabes
Deves seguir por um caminho que é o da ignorância.
Para possuires o que não possuis
Deves seguir pelo caminho da despossessão.
Para chegares ao que não és
Deves seguir pelo caminho onde não estás.
E o que não sabes é a única coisa que sabes
E o que possuis é o que não possuis
E onde estás é onde não estás.


Citação > T. S. Eliot (1888-1965), EUA/Grã-Bretanha
> in Quatro Quartetos, 1935-1943 (excerto de East Coker), ed. Ática, Lisboa, 1963
(tradução de Maria Amélia Neto).


Pintura > Jorge Martins (n.1940), Portugal
> Corner, 1976 (Colecção do Autor).
[R]

[Adenda > 15.9.2006]
A actual exposição Simulacros/Uma Antologia (no CCB, em Lisboa, até 22 de
Outubro),
confronta-nos com quatro décadas da poderosa produção plástica de
Jorge Martins.
A obra acima reproduzida - Corner - integra o núcleo expositivo
"Corpos de luz", dedicado ao período em que o artista viveu em Nova Iorque (1975
-76), relacionando-se com a série New York City World Trade Center by Light,

conjunto surpreendente de pinturas que evidenciam o fascínio do artista pelas torres
gémeas
de Manhattan, hoje transformadas em símbolos de terror.

Palavras de Jorge Martins, sobre si próprio
:
"Tudo o que digo, escrevo ou penso me parece tão verdadeiro como o seu contrário.

Daí a minha melancolia dialética, o meu lado irónico e desencantado. O meu espírito
movimenta-se por oposição e desde que me sinto instalado num sistema binário
(pendular) salto para fora dele e fico como o vértice de um triângulo a olhar para
os outros dois, ou como um electrão a saltar de órbita, à volta do núcleo, num
nevoeiro de incertezas (sebastianistas?).
Rabiscar, pintar, desenhar foi sempre o modo de me virar para dentro, de reunir
no mesmo espaço todo esse vaivém de contradições com que uma metade do meu
espírito se diverte para fazer passar o tempo, enquanto que a outra se limita às
duas dimensões da pintura para fazer passar o espaço".

> "Entrevista de João Fatela a Jorge Martins", in Diário de Notícias, Lisboa, 2.8.1979
[R]

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sábado, setembro 09, 2006

[citação 08]
COM O CORRER DOS ANOS



Com o correr dos anos, observei que a beleza, tal como
a felicidade, é frequente. Não se passa um dia em que não
estejamos, um instante, no paraíso.


Citação > Jorge Luis Borges (1893-1986), Argentina
> in Os Conjurados (excerto do Prólogo), ed. Difel, Lisboa, 1985

Instalação > Lourdes Castro (n.1930), Portugal (Madeira)
> Montanha de Flores, 1988-2003 > fotografia de Victor Simões

"Mesmo depois de murchas, as pétalas de um ramo de Malvas que vão diariamente
caindo e que ela diáriamente compõe, desenham-lhe há já catorze anos uma
montanha de flores", escreveu Manuel Zimbro a propósito desta obra de Lourdes
Castro, apresentada pela primeira vez em "Além da Sombra" (Fundação Calouste
Gulbenkian, Lisboa, 1992) e, mais recentemente, em "Sombras à Volta de um Centro"
(Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto, 2003).

O Ultraperiférico considera esta instalação uma das obras mais marcantes da arte
portuguesa
contemporânea.
[P]

Lembranças do Ultraperiférico para >> Lourdes Castro <<.

[P]/[R]

[Adenda > 11.9.2006]
O registo fotográfico desta instalação de Lourdes Castro não faz (talvez nem pudesse
ter feito)
inteira justiça à imagem que permanece na memória:
Uma sala escura, um único foco de luz sobre um ramo de malvas vermelhas colocado
num cilindro/jarra de vidro, com pétalas caídas em redor, assente num suporte/mesa
quadrado, de vidro transparente, através do qual se projectam num plano inferior
paralelo, de vidro negro, sombras e reflexos da "Montanha de Flores".

Com esta simplicidade de meios, Lourdes Castro obteve um objecto plásticamente
complexo e surpreendente, uma espécie de paisagem insular, efémera, em levitação, simultâneamente viva e ilusória. Trata-se afinal da materialização sinóptica das
"Sombras à Volta de um Centro", sintetizando também todo o seu percurso artistico,

ou apenas de um momento,
lírico e onírico, de transfiguração do quotidiano.
[R]

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quarta-feira, setembro 06, 2006

CONDOMÍNIO PRIVADO





O debate sobre o estado da arquitectura portuguesa tem sido diminuto, se tivermos
em conta a dimensão dos problemas nesta área e que é urgente estancar a frenética
degradação da paisagem urbana do país.
Parece-nos evidente que é preciso salvaguardar o que resta, reabilitar o que existe,
recuperar o que é possível, planear com regras, implodir o que não tem remédio.
A responsabilização pelos problemas existentes não implica apenas, nem sobretudo,
os arquitectos. Porém, ficámos agora a saber através de um gráfico publicado
n'A Barriga de um Arquitecto (Arquitectos por milhar de habitantes), que não
faltam arquitectos em Portugal, por comparação com outros países da União
Europeia, o que torna a questão ainda mais insólita.
Postas de lado eventuais deficiências de qualificação profissional, interrogamo-nos
se são os arquitectos, ou as equipas e empresas que estes integram, a ter pouca
capacidade de influenciar as políticas autárquicas, ou se são os poderes autárquicos
e os negócios ou interesses empresariais de que os arquitectos afinal dependem a ter
excessiva força. Outra questão, que não é despicienda, corresponde a um problema
mais vasto, de natureza cultural, referida por Helena Roseta, presidente da
Ordem
dos Arquitectos, numa entrevista recente (cito de memória):
"Em Portugal
existe uma enorme falta de cultura estética e visual".
E o que têm feito as universidades portuguesas para diagnosticar e divulgar os
erros de ocupação do território? Que avaliação é feita, década a década, para que
não se repitam os mesmos erros urbanísticos?
É certo que vão surgindo projectos qualificados por todo o país, sobretudo de
reabilitação e recuperação dos centros históricos das cidades, afastando do nosso
horizonte o pesadelo das décadas de 1970 e 80, que provocou enormes mazelas,
algumas irreversíveis.
Hoje, o que avança a um ritmo aparentemente imparável são, além dos inenarráveis
subúrbios das grandes e das pequenas cidades, as zonas de construções novas em
torno dos núcleos antigos, desarticuladas destes e da restante paisagem.
Um caso paradigmático é a cidade de Miranda do Douro, do lado português do
Parque Natural do Douro Internacional, onde a par da cuidada recuperação do seu
notável centro histórico continuam a crescer bairros de péssima arquitectura.
Parece que na generalidade das autarquias se tornou moda cuidar dos centros
históricos como se fossem ilhas. Será um pretexto para libertar os autarcas das
suas obrigações de exigência para com novos projectos, face à pressão imobiliária e
aos negócios subterrâneos? Será um pretexto para lucrar em duas frentes, o turismo
e a construção civil, calando de vez as associações de defesa do património histórico
e, simultâneamente, satisfazendo os interesses particulares?

Convém não esquecer o óbvio: o património arquitectónico do futuro também terá
que integrar a paisagem urbana que formos construindo no presente.
[R]

[Adenda > 7.9.2006]
Alguns textos fundamentais n'A Barriga de um Arquitecto:
> Ideologia urbana > Preconceitos urbanos > Anti-paisagem
[R]

Fotografia > Anónimo (Portugal)
> Dólmen celta, Penafiel, s/data (c.1910?), postal ilustrado fototípico
(foto
© FH/CRO)
[R]

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