quarta-feira, março 21, 2007

[citação 19]
A ARTE



A arte é poética

Brilhos, fulgores opacos de escrita,
desvios para os dois lados da margem
sem transposição de limites...

As ambíguas violências da paisagem, o reflexo do mar
nos vidros, tudo o - não especificamente poético - que retome
o poema, o desenvolva para além dele,
para o outro lado do sono, da respiração.

Repito: "brilhos, fulgores...", e através do verso assim recomeçado
é a minha própria voz que ouço e me atinge.
Diversa, no entanto, da voz inicial.
E essa outra, imaterial e abstracta,
já não é daqui, isto é,
pertence à própria conclusão de um pensamento estético,
de uma metafísica própria,
que me suportam e transcendem.

Citação/Poema > Nuno Júdice (n. 1949), Portugal
> in Crítica Doméstica dos Paralelepípedos,
ed. Publicações D. Quixote/
Cadernos de Poesia, Lisboa, 1973.


Pintura > Hans Hartung (1904-1989), Alemanha/França
> T-50 peinture 8, 1950

[
R]

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domingo, março 11, 2007

MARIA CLEMENTINA DINIZ (1940-2007)



Ela, a quem Roteia homenageou discretamente no post anterior. Ela amava a poesia,
a música, a pintura, a psicologia e todas as formas de conhecimento. A vastidão do
seu saber impressionou quem teve a sorte de lhe ouvir a palavra extraordinária. A
força de carácter, a firmeza de convicções e a generosidade marcaram os seus alunos,
colegas, amigos. Ela frequentou a Faculdade de Medicina de Lisboa e no terceiro ano
decidiu: "não é isto que eu quero". E foi fazer o curso de Psicologia Clínica no Instituto
Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), onde mais tarde viria a ensinar e a integrar
os corpos directivos. Durante muitos anos dirigiu o Serviço de Psicologia Clínica do
Hospital Júlio de Matos.
A ela se deve no nosso país, o contributo fulcral para o reconhecimento do papel da
psicologia no campo da saúde mental, e a definição dos contornos científicos e éticos
da profissão.
Faleceu a 7 de Março e não será esquecida. A todos os que a escutaram, ofereceu
generosamente o seu vasto saber. Aos mais atentos, transmitiu a sua cintilante
sabedoria.

Para que fique dito.
[P]

Fotografia > Rui Fonseca (n. 1960), Portugal
>
Onda, Tocha, Figueira da Foz, 1986 (in Visão Litoral, ed. Ether, 1993)
[R]

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quinta-feira, março 08, 2007

PARÁBOLA



E eu vou citar de memória, uma vez mais, o que ela me disse certa manhã, olhando
-me nos olhos. Refiro-me a um texto do Padre António Vieira que também ela citava
de memória, para mim:

"Havia um filósofo que todos os dias fazia o mesmo caminho entre a sua casa e a
universidade. E todos os dias, nesse percurso, encontrava um homem a partir pedra.
Certo dia, o filósofo decidiu abeirar-se do homem e
disse-lhe, condoído: "pobre
homem, que estais sempre a partir pedra, a partir
pedra ..." e, discorreu, de seguida,
acerca daquele trabalho penoso, das agruras da vida,
dos males do mundo. Ouvido
o discurso do filósofo, o homem que passava os dias a
partir pedra, levantou o olhar
do seu bloco de granito, e respondeu: "Não, eu não estou a partir pedra, estou a
construir uma catedral."
[R]

[Adenda > 10.3.2007]
Um esclarecimento tardio: é bem possível que a maioria das palavras desta breve
"parábola" de Vieira não seja fiel ao texto original. Afinal, quem conta um conto
acrescenta-lhe um ponto...
[R]

Pintura > Giovanni Bellini (c.1476-c.1516), Veneza, Itália
> Sacra Conversazione, 1505, Igreja de San Zaccaria, Veneza
[R]

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sexta-feira, março 02, 2007

QUOTIDIANO



Nove da manhã. Grande fila de espera (não era bicha que se dizia?) na paragem do
autocarro. Cerca de trinta pessoas aguardam a chegada do 35 que, pelo horário da
Carris, deveria ter chegado há cerca de meia-hora. Mas isso já ninguém espera,
porque não há grande memória de que o 35 ou outro qualquer autocarro cumpra os
horários jocosamente afixados nas paragens desta nossa desorganizada Lisboa.
Das cerca de trinta pessoas, quase vinte são idosas. Penso nas questões demográficas
e no envelhecimento da população...Nisto chega o dito autocarro, subindo com
dificuldade a rua, devido à sobrelotação que já se vislumbra à distância. Grande
alvoroço porque "a ver se consigo entrar", "se calhar nem pára" e porque "em terra
é que eu não fico" e lá nos vamos atafulhando no parco
espaço disponível. Grandes
apertos e empurrões e segue a viatura.
Como de costume, as velhotas que acabam de entrar, deixando para trás alguns
estudantes e pessoas que se dirigem para o trabalho, irão sair uns 300 metros à
frente, perto do mercado, onde verificarão o preço das alfaces, entre dois ou mais
dedos de conversa.
Uma das senhoras, particularmente agitada, decide queixar-se das condições do
transporte, enquanto (não) abre espaço com os cotovelos (afinal teria que preparar
a saída para daí a nada - o tempo da sua viagem). Segue-se grande convulsão que,
felizmente, dura pouco, porque o mercado é já aqui... O suficiente, no entanto, para
umas doses de encontrões, insultos e arranhadelas.

Parece haver uma procura das situações de "hora de ponta" por parte dos lisboetas
mais idosos - seja na repartição pública, no centro de saúde ou no transporte
colectivo. Tratar-se-à de uma compensação à solidão? De uma procura de pequenos acontecimentos, sempre prováveis neste tipo de aglomerados? O pequeno atrito que
dará tema de conversa para o resto do dia?
A mim parece-me que sim, que haverá uma procura nos espaços públicos daquilo
que não acontece no espaço privado. No entanto, a escolha faz-se mais pelo critério
da agitação do que pelo critério da qualidade, mais pela (des)inserção em situações
propiciadoras de reacções básicas do que por aquelas que ajudam a elevar o
indivíduo. O "conforto" e confronto da multidão como panaceia perversa da solidão e
falta de contacto afectivo... Lembro-me daquelas crianças que, para atrair a atenção,
fazem maldades...
[B]

Pintura > Hans Baldung Grien (c.1484-1545), Alemanha
> As Três Idades do Homem e As Três Graças, 1531, col. Museo del Prado, Madrid.
[R]

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