quarta-feira, agosto 30, 2006

O SAGRADO E O PROFANO



Falávamos, ela e eu, de arte italiana, das nossas preferências comuns, Giorgione,
Carpaccio, Bellini, Tiziano, Tintoretto e outros mestres antigos da escola veneziana,
da luz dourada de Veneza misteriosamente transposta para as sacra conversazione.
Eu, a propósito de uma primeira viagem a Roma, comentei a repulsa que senti quando
me confrontei com os delírios barrocos do Vaticano, todos aqueles altos-relevos de
"suas santidades" deslizando pelas descomunais paredes do interior da basílica de São
Pedro, entre sumptuosos panejamentos de mármore polido. Mas comentei também
que, ao lado dos abundantes luxos da basílica, mora a sublime Pietà de Miguel Ângelo,
essa representação sinóptica da tragédia humana, que nos fala da dor incomensurável
de todas as mães que carregam ao colo um filho morto.
Ela disse: "a posse das almas é a mais tenebrosa das formas de poder, bem mais
abominável
que a riqueza ostensiva de muitos templos católicos. Porque associar
luxos materiais aos sistemas de poder é perverso, sim, e subentende corrupção, mas
está tão presente nos poderes laicos como nos poderes religiosos".
Súbitamente, o
rosto dela perdeu a serenidade habitual, e mal disfarçando a cólera, ela disse: "Se eu
pudesse entrava nas igrejas do mundo inteiro e partia todos os crucifixos que

encontrasse".
Estupefacto com esta explosão de ateísmo iconoclasta, eu lembrei-lhe
que entre esses crucifixos se encontrariam seguramente algumas obras-primas da
arte ocidental. Ao que ela apenas acrescentou: "A glorificação do sofrimento é
imperdoável".

Digo agora, alguns anos depois desta conversa, que nunca mais olhei da mesma
maneira para um crucificado. Digo também que continuam a fascinar-me as
expressões profanas contidas em certas obras de arte-sacra do passado, quando os
artistas, então sujeitos ao predomínio das encomendas religiosas, utilizavam
inteligentemente os temas obrigatórios como mero pretexto para exprimir a sua fé
na beleza, ou para representar a nudez da figura humana e o eros proibido, ou outros
"pecados dignos de fogueira" que ainda hoje povoam os altares. Ou quando uma obra,
a partir de um tema religioso, nos fala afinal das coisas simples e comoventes do
quotidiano, ou nos coloca perante a nossa complexa e precária condição humana.
Os ícones religiosos foram sendo abandonados e desconstruídos ao longo do século
XX, ao ponto de podermos afirmar que as artes visuais se libertaram do
cristianismo. Os artistas tornaram-se mais independentes, conquistaram o direito
de se exprimir em total rotura com padrões e códigos dominantes nos séculos
precedentes. Mas as tensões religiosas e os seus reflexos na sociedade permanecem
na ordem do dia, talvez de modo mais perigoso que nunca. Toda a espécie de poderes,
através das suas ligações mediáticas, tem vindo a promover novas e constantemente
renovadas formas de manipulação de massas, servindo-se tanto de velhos ícones
sagrados como da sua dessacralização.

Na sua última digressão mundial, Confessions Tour 2006, Madonna simula em
palco uma auto-crucificação, utilizando como adereços cénicos, dois dos principais
símbolos da paixão de Cristo, a cruz e a coroa de espinhos.
As reacções oficiais do Vaticano, ameaçando excomungar Madonna, e a ira dos
crentes junto aos locais dos espectáculos, lembram, ainda que com diferentes
proporções, as reacções do mundo islâmico aos cartoons dinamarqueses. E também
não deixam de lembrar as antigas perseguições do Santo Ofício. Mas não se estranha
que Madonna se empenhe em "deitar achas à fogueira": habituámo-nos aos
espectáculos provocatórios que a promovem como deusa do star system. Nem se
estranha que alguns dos jovens que a idolatram, já reclamem do Vaticano a sua
futura beatificação.
Com o mesmo afinco profissional com que antes simulava masturbar-se em palco,
Madonna entrega-se agora a encenações místicas. Para continuar na berra, o
escândalo e a polémica são-lhe indispensáveis. Talvez a cantora ambicionasse, à sua
passagem por Roma, perseguições e mandatos de prisão, mas tal não aconteceu.
Continua intacto o mito do modelo americano da liberdade de expressão.

Ver também a propósito da digressão de Madonna:
Coroas de Pinho > Ecce Femina
Diário Ateísta
> A crucificação de Madonna > A crucificação de Madonna -
actualização >
Madonna e a cruz > Madonna diabólica
[R]

Pintura > Salvador Dali (1904-1989), Espanha
> Cristo de San Juan de la Cruz, 1951, Col. Glasgow Gallery of Art
[R]

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sábado, agosto 19, 2006

[citação 07]
SÓ TE



- Só te mando um mail se tu me mandares um primeiro.
- Só te comento se tu me comentares primeiro.
- Só te linko se tu me linkares primeiro.
- Só te se tu.
- Tu só.

Texto/Citação > José Quintas, Portugal
> integralmente copiado deste
post, publicado a 18 de Julho, no Branco Sujo.

(ver e ler também os postes de Junho, com link discreto no fim do blogue).

Fotografia > Giacomo Brogi (1822-1881), Itália
> Mercurio, opera di Gian Bologna, Museo Nazionale, Firenze, ed. Brogi,
s/d (c.1900),
(foto © FH/CRO).

Na mitologia romana,
Mercúrio, filho de Júpiter, era mensageiro geral dos deuses
e deus da eloquência, invocado também
com
o patrono de comerciantes, viajantes e
ladrões. Era representado com um gorro de
feltro alado, asas nos pés e, numa das
mãos, um caduceu (insígnia que simboliza a concórdia, formada por uma varinha
de madeira de loureiro terminando em asas, em torno da qual se entrelaçam duas
serpentes).

A escultura Mercúrio, por Giambologna (1529-1608), arquitecto e escultor
flamengo radicado em Itália, inscreve-se na corrente maneirista, explorando este
tema da mitologia clássica, no domínio formal e estilístico, através da dualidade
estável/instável, assim sugerindo, magistralmente, o equilíbrio em movimento da
figura humana.
Com estúdio fotográfico em Florença, o autor desta fotografia do Mercúrio foi
Giacomo Brogi (ou um dos seus herdeiros), responsável por uma das grandes
casas europeias de fotoedição especializada em fotografia do património artístico
italiano, com actividade ao longo da segunda metade do século XIX e primeiras
décadas do século XX.
[R]

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quarta-feira, agosto 16, 2006

TRESLEITURAS



Tenho notado na blogosfera lusa a tendência frequente de bloguistas e comentadores
para tresleituras de textos alheios. Coloco por isso as seguintes questões:
Em vez de discutirmos saudavelmente os conteúdos dos posts, com discordâncias
legítimas, não estaremos a descredibilizar assim as potencialidades da blogosfera?
E não haverá nisso uma certa irresponsabilidade?

Pegar numa frase e eliminar o seu contexto, como se todas as frases restantes fossem ornamentos supérfluos, talvez seja uma das formas mais comuns de tresleitura. Outra,
mais sofisticada, é aquela que se serve da inversão do sentido de uma frase, ou de um
conjunto de frases, para daí obter sentidos antagónicos feitos por medida.
Se tal se deve a má-fé, desconfiança, frustração, animosidade, destempero, azedume,
irritação, simples passatempo, ou outra coisa qualquer, isso não sei.
O que penso da blogosfera, e também o digo a mim próprio, é que este novo meio de comunicação/informação alternativo, sendo simultâneamente interpessoal e global,
nos impõe acrescidas responsabilidades.

Podemos encarar a blogosfera como um espelho de reflexos múltiplos, intermináveis.
Mas onde tudo cabe, não tende a tornar-se um lugar onde nada cabe?
Num país com parcos hábitos de debate de ideias parece que os trinta anos da nossa
democracia ainda não foram suficientes para tornar mais dialogante a sociedade
portuguesa. De quanto tempo precisaremos ainda para derrubar as sombras da
ditadura?
[R]



[Adenda > 17.8.2006]
CÁTEDRA

Haverá sempre quem sinta incomodidade perante opiniões divergentes das suas. O
debate nem sempre é fácil, a tendência será para eliminar a incomodidade rotulando automáticamente o ponto de vista do outro. Será próprio da condição humana e da
insegurança que a caracteriza: são mecanismos defensivos/ofensivos, como se
se ficasse inferiorizado perante o que é sentido como superior, ou superiorizado
perante o que é sentido como inferior.
Mas não tem que ser assim: o debate de ideias não tem que ser vivido como um
desafio de futebol, em que o adversário ou nos vence ou é vencido. O exercício do
debate é fundamental, lucramos todos com isso. Tem faltado em Portugal?
Seguramente.
O espírito de cátedra permanece inalterado, com os mesmos vícios de antigamente.
Esperamos que a nossa blogosfera não se deixe contaminar? Seguramente.
[P]

[Adenda > 19.8.2006]
Sérgio Lavos no Auto-Retrato deu início a uma série de posts refletindo sobre
O mal dos blogues. Para ler devagar.
[R]

Pintura > Paula Rego (n.1935), Portugal
> Salazar a vomitar a Pátria, 1960, Col. CAM/F.C. Gulbenkian, Lisboa

Fotografia > Horácio Novais (1910-1988), Portugal
> Reitoria da Universidade, Lisboa, s/d (déc.1960), (foto © FH/CRO).
[R]

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segunda-feira, agosto 14, 2006

ANIVERSÁRIOS E SALAMALEQUES



Vamos assistindo nos orgãos de informação a sucessivas releituras ou reescrituras
dos aniversários de protagonistas da História, que incluem (f)úteis branqueamentos
de ditaduras e ditadores. Os noticiários televisivos deste fim de semana estiveram
cheios de coisas assim, com indisfarçados hossanas e mal dissimuladas diabolizações.

A propósito do centenário do ditador
Marcelo Caetano, o afilhado Marcelo Rebelo
de Sousa, na sua actualizada "conversa em família" da RTP1, não mencionou, nem
de raspão, a conivência do marcelismo com a polícia política e a censura. Escolheu
o elogio, escolheu salvar a face ao padrinho Marcelo professor de Direito que,
segundo o afilhado homónimo, foi durante várias décadas o responsável absoluto
pelo "edifício legislativo" do regime salazarista. E que edifício! E que legislação!
Portanto, sobre a figura de Caetano como "presidente do conselho de ministros",
parece apenas ter sobrado o rigor do jurista e a grandeza política e moral do homem
íntegro, que não teve outro remédio senão continuar o ideário do seu antecessor,
mas contrariadíssimo, coitado.

Também a propósito do octogésimo aniversário do ditador
Fidel Castro, poucos
parecem interessados em esclarecer os vários lados da História. Vão-se preparando
horas e horas a fio de transmissão em directo das muito aguardadas exéquias
fúnebres e, enquanto se aguarda, sempre se vai aproveitando para ridicularizar os
intermináveis discursos de Fidel e salientar a ausência de liberdades políticas e a
perseguição aos opositores do regime. Evita-se, deste modo, analisar e comparar
com as anteriores, as actuais condições de vida do povo cubano, ou contextualizar
a acção de Fidel como resposta à ditadura corrupta que o precedeu e como exemplo
de resistência ao despotismo do vizinho norte-americano.

É muito útil mostrar vezes sem conta a imagem de Fidel Castro a tropeçar do
palanque e a espalhar-se no chão, do mesmo modo que é muito útil não mostrar
outras imagens incómodas. Quem se lembra de Cavaco a desmaiar no Palácio de
Belém durante a tomada de posse de Guterres?

E quanto às democracias, estarão elas isentas de pecado? Será que a liberdade de
informar e opinar não seria beneficiada com o exercício da objectividade?
Porque as ditaduras e os ditadores são o que são, mas talvez não tenham caído do céu
aos trambolhões. E os sectarismos de estimação, à direita e à esquerda, cada qual
defendendo os seus interesses ou as suas crenças com dogmáticas certezas absolutas,
apenas vêm radicalizar as perspectivas e as análises. Entre uns e outros, venha o
diabo e escolha.
[R]

Fotografia > Fernando Lemos (n. 1925), Portugal
> Manequim do Vespeira, Lisboa, 1952 (Col. Berardo)

Fernando Lemos fotografou O menino imperativo (
manequim, búzio e velas) de
Marcelino Vespeira (1925-2002),
na tripla exposição surrealista que estes
autores apresentaram com Fernando de Azevedo (1923-2002), na Casa Jalco
em 1952.

Hoje na colecção do Centro de Arte Moderna/F.C. Gulbenkian, esta obra de Vespeira
é a única
com manequins que sobreviveu às várias que realizou . As restantes são
apenas conhecidas através das fotografias de Lemos.
[R]

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quarta-feira, agosto 09, 2006

Semelhanças e Diferenças [3]
ARNALDO FONSECA



Quem é Arnaldo Fonseca?
Tendo apenas disponíveis alguns dados biográficos, mas sem obras fotográficas
divulgadas em número significativo, sem arquivos ou colecções que disponibilizem
essas obras e sem estudos críticos publicados, continuaremos sem saber quem é
Arnaldo Fonseca, ou quem foi? - uma vez que o presente do indicativo apenas se
deveria aplicar a autores relevantes ("aqueles que por obras valerosas...").

Trata-se de mais um caso esquecido, típico do nosso ultraperiférico alheamento
cultural, ou será que o seu trabalho não possui relevância intelectual e artística?

Arnaldo Fonseca, fotógrafo profissional, com actividade em Lisboa ao longo das
décadas de 1890 e 1900, ter-se-à iniciado no meio militar (v. capa do "Manual-Guia
do Photographo Amador -
Por Arnaldo Fonseca - Com o curso de Marinha.
Preparador do gabinete de Photographia da Escola Naval".

Além de fotógrafo profissional, entre as inúmeras actividades no âmbito da fotografia,
destacou-se como professor, investigador de processos fotoquímicos, autor de
tratados técnicos para fotógrafos amadores, o primeiro dos quais (Tratado Geral de
Photographia, 1891) foi sucessivamente adaptado e actualizado em posteriores
reedições (até 1911), autor de importantes reflexões sobre direitos de autor (La
Proprieté Photographique,
1905), director de periódicos como o Boletim
Photographico
(1900-1914), onde publicou textos de crítica, fundador e dirigente
da Sociedade Portuguesa de Photographia (1907-1914). São-lhe ainda atribuídas
as primeiras experiências portuguesas de fotografia aérea, que terá levado a cabo
em 1896, realizadas a partir de balão.

Abandonou definitivamente a actividade fotográfica, em 1911, para se dedicar à
carreira diplomática ao serviço da 1ª República. Supomos que tenha saído do país,
desiludido com, deduz-se destas suas palavras, "a sacratíssima ignorância em que
nos espojamos mais ou menos
suinamente".

(A maioria das informações contida neste post basearam-se na obra imprescindível
de António Sena, História da Imagem Fotográfica em Portugal, 1839-1997,
ed. Porto Editora, Porto, 1998)
[R]

Livros > Autor: Arnaldo Fonseca (1868-1936?), Portugal
> Manual-Guia do Photographo Amador, ed. J. J. Ribeiro & C.ª, Lisboa, 1899
> Guia do Photographo, ed. Worm & Rosa, Lisboa, s/d (1905)
(biblos © FH/CRO)/(biblos © FH/CRO)
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quinta-feira, agosto 03, 2006

Semelhanças e Diferenças [2]
BORDALLO PINHEIRO E MATISSE



Contrariamos aqui certas perspectivas economicistas, segundo as quais uma das
razões para o actual "atraso português" radica na pequenez e na pobreza territorial
do país. Pois se no passado fomos prisioneiros da nossa periferia geográfica, como
encarar a persistência de condicionalismos ao desenvolvimento no contexto da União
Europeia e do mundo globalizado?
Estamos convictos de que, antes de mais, devemos responsabilizar a nossa
mentalidade cultural por este estado de coisas.
Dos governantes exigir-se-iam fortíssimas e corajosas políticas culturais, recentrando
os gastos em formação de agentes e em formação de públicos como medidas de
investimento a longo prazo. Dos criadores e produtores exigir-se-iam abertura,
diálogo e ousadia. Dos media, exigir-se-iam estratégias culturais, uma vez que,
devido às guerras de audiências, corremos o risco de ver os orgãos de informação
transformados em meros focos de irresponsabilidade.

As duas peças reproduzidas, possibilitam-nos uma certa caracterização do estado das
artes e das mentalidades em Portugal e em França no início do século XX, ambas
realizadas por artistas proeminentes nos respectivos países :
O jarrão, peça cerâmica portuguesa de Raphael Bordallo Pinheiro (1846-1905),
caricaturista e ceramista, autor do ícone nacional Zé Povinho; e La Serpentine,
escultura de Henri Matisse (1879-1973), pintor francês e uma das principais
referências universais da modernidade.

Entre as duas peças um abismo: o jarrão de Bordallo, exibindo o pendor extravagante
e decorativo que viria a afirmar-se como tipologia regional na tradição cerâmica das
Caldas da Rainha, é uma quase-escultura, uma espécie de delírio estilistico "art-
nouveaux", que adiciona elementos vegetalistas e animalistas surrealizantes a um
objecto da tradição popular (o jarrão/bilha); La Serpentine, escultura em bronze,
mostra-nos a desconstrução do corpo feminino, procurando na pureza formal e nos
ritmos plásticos serpenteados uma ruptura com os cânones clássicos.



Separam, em suma, as duas peças e os seus autores, diferentes noções de ousadia e
diferentes tradições artísticas. Vistos hoje, à distância de um século, os contributos
artísticos que estas peças simbolizam, colocam-nos, a nós portugueses, na posição
fatalista de herdeiros do infortúnio?
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Ver no post anterior, em Adenda > 7.8.2006, as semelhanças e diferenças entre
as duas imagens fotográficas
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