
Falávamos, ela e eu, de arte italiana, das nossas preferências comuns, Giorgione,
Carpaccio, Bellini, Tiziano, Tintoretto e outros mestres antigos da escola veneziana,
da luz dourada de Veneza misteriosamente transposta para as sacra conversazione.
Eu, a propósito de uma primeira viagem a Roma, comentei a repulsa que senti quando
me confrontei com os delírios barrocos do Vaticano, todos aqueles altos-relevos de
"suas santidades" deslizando pelas descomunais paredes do interior da basílica de São
Pedro, entre sumptuosos panejamentos de mármore polido. Mas comentei também
que, ao lado dos abundantes luxos da basílica, mora a sublime Pietà de Miguel Ângelo,
essa representação sinóptica da tragédia humana, que nos fala da dor incomensurável
de todas as mães que carregam ao colo um filho morto.
Ela disse: "a posse das almas é a mais tenebrosa das formas de poder, bem mais
abominável que a riqueza ostensiva de muitos templos católicos. Porque associar
luxos materiais aos sistemas de poder é perverso, sim, e subentende corrupção, mas
está tão presente nos poderes laicos como nos poderes religiosos". Súbitamente, o
rosto dela perdeu a serenidade habitual, e mal disfarçando a cólera, ela disse: "Se eu
pudesse entrava nas igrejas do mundo inteiro e partia todos os crucifixos que
encontrasse". Estupefacto com esta explosão de ateísmo iconoclasta, eu lembrei-lhe
que entre esses crucifixos se encontrariam seguramente algumas obras-primas da
arte ocidental. Ao que ela apenas acrescentou: "A glorificação do sofrimento é
imperdoável".
Digo agora, alguns anos depois desta conversa, que nunca mais olhei da mesma
maneira para um crucificado. Digo também que continuam a fascinar-me as
expressões profanas contidas em certas obras de arte-sacra do passado, quando os
artistas, então sujeitos ao predomínio das encomendas religiosas, utilizavam
inteligentemente os temas obrigatórios como mero pretexto para exprimir a sua fé
na beleza, ou para representar a nudez da figura humana e o eros proibido, ou outros
"pecados dignos de fogueira" que ainda hoje povoam os altares. Ou quando uma obra,
a partir de um tema religioso, nos fala afinal das coisas simples e comoventes do
quotidiano, ou nos coloca perante a nossa complexa e precária condição humana.
Os ícones religiosos foram sendo abandonados e desconstruídos ao longo do século
XX, ao ponto de podermos afirmar que as artes visuais se libertaram do
cristianismo. Os artistas tornaram-se mais independentes, conquistaram o direito
de se exprimir em total rotura com padrões e códigos dominantes nos séculos
precedentes. Mas as tensões religiosas e os seus reflexos na sociedade permanecem
na ordem do dia, talvez de modo mais perigoso que nunca. Toda a espécie de poderes,
através das suas ligações mediáticas, tem vindo a promover novas e constantemente
renovadas formas de manipulação de massas, servindo-se tanto de velhos ícones
sagrados como da sua dessacralização.
Na sua última digressão mundial, Confessions Tour 2006, Madonna simula em
palco uma auto-crucificação, utilizando como adereços cénicos, dois dos principais
símbolos da paixão de Cristo, a cruz e a coroa de espinhos.
As reacções oficiais do Vaticano, ameaçando excomungar Madonna, e a ira dos
crentes junto aos locais dos espectáculos, lembram, ainda que com diferentes
proporções, as reacções do mundo islâmico aos cartoons dinamarqueses. E também
não deixam de lembrar as antigas perseguições do Santo Ofício. Mas não se estranha
que Madonna se empenhe em "deitar achas à fogueira": habituámo-nos aos
espectáculos provocatórios que a promovem como deusa do star system. Nem se
estranha que alguns dos jovens que a idolatram, já reclamem do Vaticano a sua
futura beatificação.
Com o mesmo afinco profissional com que antes simulava masturbar-se em palco,
Madonna entrega-se agora a encenações místicas. Para continuar na berra, o
escândalo e a polémica são-lhe indispensáveis. Talvez a cantora ambicionasse, à sua
passagem por Roma, perseguições e mandatos de prisão, mas tal não aconteceu.
Continua intacto o mito do modelo americano da liberdade de expressão.
Ver também a propósito da digressão de Madonna:
Coroas de Pinho > Ecce Femina
Diário Ateísta > A crucificação de Madonna > A crucificação de Madonna -
actualização > Madonna e a cruz > Madonna diabólica
[R]
Pintura > Salvador Dali (1904-1989), Espanha
> Cristo de San Juan de la Cruz, 1951, Col. Glasgow Gallery of Art
[R]
Etiquetas: cristianismo, Madona, Maria Clementina Diniz, Salvador Dali