quinta-feira, fevereiro 16, 2006

GLOBALIZAÇÃO E TERROR



Todo o alarido em torno do "caso cartoons" é paradigmático das diferenças
civilizacionais entre dois mundos. De um lado, o mundo democrático ocidental,
usando e abusando da imagem, do outro lado, o mundo ditatorial islâmico, assente
em relações de poder que se vêm perpetuando através da palavra.

Dada a sua reproductibilidade nos media, a imagem mecanizada – nas suas variantes
fotográfica, videográfica ou infográfica – é a força motriz da globalização. Tornou-se
por isso uma ameaça civilizacional para ambos os lados, porque transforma hábitos
ou abre roturas históricas no campo da comunicação.
Do lado de cá, devido à banalização mercantilizada da imagem, e à sua consequente
utilização manipulatória (no Ocidente do mercado "livre" só tem existência o que
se reproduz e mediatiza), existe uma ameaça sobre o sistema de valores tradicional;
do lado de lá, porque uma previsível secundarização da palavra sagrada (a palavra
corânica) pode colocar em perigo modos de sobrevivência seculares, o sistema
hierárquico político-religioso e a própria fé.
A manipulação exercida sobre os crentes muçulmanos tem um significado maior que
a intolerância, o fanatismo violento ou a cólera das multidões. Significa também medo
e astúcia.

Ao contrário do cristianismo, com longa história iconográfica, o islamismo proíbe ou
desaconselha a representação por imagens. Se a nudez da figura de Cristo, desde a
pintura renascentista, não impressiona nenhum crente, já a simples representação
da figura de Maomé pode tornar-se chocante ou blasfema.
Neste contexto, os cartoons são apenas uma forma de expressão de liberdade. Não
são a liberdade de expressão. E o que afinal nos deve interessar, face à diferença,
é a responsabilidade de expressão .
O mundo islâmico fará o seu caminho com imagens, mais rápidamente do que parece,
se não tiver como pretexto a intrusão cristã.

A resistência muçulmana à hegemonia globalizante do Ocidente, tira partido do
sistema mediático ocidental. Vejam-se os atentados de Nova Iorque, Madrid e
Londres. Aterrorizados do lado de lá, tornam-se terroristas do lado de cá, servindo
-se dos nossos media para disseminar o terror. E nós engolimos. E eles fabricam
mártires.

Não existe um choque de civilizações, existem diferenças civilizacionais. Por isso
repetimos: mais importante que a liberdade de expressão é a responsabilidade
de expressão. Se não entendermos isto, sobrará alguma coisa nos dois lados?

Saudações ultraperiféricas.
[R]

(texto adaptado de um comentário nosso em Good Sport! Os Cartoons via Irão,
em Adufe)

Fotografia > Paulo Baptista (n.1960),
> Mãos, 1985 (foto © FC/CRO).

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7 Comentários:

Anonymous Anónimo escreveu...

Mais um excelente texto seu, caríssimo Roteia. Gostaria de destacar este ponto: "A resistência muçulmana à hegemonia globalizante do Ocidente,
tira partido do sistema mediático ocidental" Não podia estar mais coroado de razão amigo Roteia. Cá me cheira que tem sido esta a maior arma deles e a que lhes tem conferido a vitória em todas as "batalhas" de Nova Iorque, Londres, Madrid e a dos Cartoons. É essa a nossa evidente fraqueza. Mas urge não cair no extremo de a controlar ou apelar demasiado à liberdade responsável. Todos concordamos, pelos vistos, no cerne do problema. Como sempre, divergimos no ponto de equilíbrio. Mas uma coisa é certa: é um problema assaz delicado com argumentos válidos de todos os lados...

16 fevereiro, 2006 12:35  
Anonymous Anónimo escreveu...

Confesso que ainda não me tinha ocorrido que "imagem" e "palavra" podiam ter um significado tão antagónico neste fosso que todos os dias aumenta entre "ocidente" e Islão. É melhor começarmos a pôr em causa o papel do "repórter sempre em cima do acontecimento". Uff! Isto está a ficar agreste! Saudações. PropanoLoL.

17 fevereiro, 2006 14:14  
Blogger Rui MCB escreveu...

É adufe.weblog.com.pt :-)

17 fevereiro, 2006 16:26  
Blogger João Dias escreveu...

Gosto desta dialéctica sobre o prisma da dualidade imagem vs palavra.
No livro "Sobre a televisão" de Pierre Bourdieu são abordadas questões sobre a televisão mas principalmente no que diz respeito aos serviços informativos. Ele desenvolve um conceito que é o de "fast thinking" (pensamento rápido) que apesar de parecer coisa para intelectual é na realidade manha para enganar "tolos".
Consiste em evitar debates sérios e ponderados, proferir muitos "soundbytes" e ideias simples e rápidas para que o espectador as possa implementar rapidamente e sem questionar muito. Nunca entrar em "relativismos" de tentar perceber o outro lado da questão, inviesar sempre a questão para o nosso espectro para que a concórdia seja maior e para que, posteriormente, possa eclodir o irracional já lubrificado pelo consenso geral.
Mesmo estando nós em democracia em que o debate de ideias é "sagrado", a força estéril da imagem e o vazio do imediatismo roubou-nos a verdadeira liberdade de expressão. Afinal de contas somos tão parecidos com os fervorosos defensores de Maomé, somos facilmente domesticáveis, somos conduzidos ao abismo na luta dos inocentes.

18 fevereiro, 2006 01:08  
Blogger João Dias escreveu...

Já agora...excelente post.
;-)

18 fevereiro, 2006 01:10  
Anonymous Anónimo escreveu...

Procuro clarificar. O cerne do problema não creio que seja a questão da democracia ocidental vs. despotismo islâmico, bem como os valores que lhe estão associados, como liberdade vs. opressão ou palavra vs. imagem. Existem dicotomias sérias, sim, mas não são elas que em meu entender explicam esta pré-guerra mediatizada.
A questão que me parece pertinente tem contornos ideológicos: é que por detrás de uma aparente perda crescente de diferenças ideológicas no mundo contemporâneo, assistimos ao estabelecimento de uma ideologia única, a que chamaríamos economicismo, a qual nos é proposta por gente sem rosto, sentada por detrás de números e raciocínios que desconhecemos. E é neste contexto táctico de mercados que cresce nos dois lados a manipulação.

Veja-se como no caso português Cavaco se mostrou adversário do mundo da política (ele não tem nada a ver com isso...!) opondo-lhe um estatuto aceptico da economia.

18 fevereiro, 2006 17:57  
Anonymous Anónimo escreveu...

Caro César Viana: Estou completamente de acordo com o comentário. Para mais a corporação dos jornalistas acha-se sempre acima de qualquer crítica.
Aqui por este blog acreditamos que é possível refazer as "agendas mediáticas" exclusivas do jornalismo, agendas essas que têm passado quotidianamente pelas notícias bombásticas e catastróficas ou pelos escândalos de faca e alguidar, ajudando a perpetuar o escândalo da mediocridade das massas.
Quanto a uma agenda alternativa: E que tal falar de arte? A arte não produz notícias? São coisas sem sangue visivel, coisa chatas, não é? Para que serve afinal uma boa música, uma boa arquitectura, uma boa escultura, um bom desenho?

01 março, 2006 00:11  

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