sexta-feira, setembro 22, 2006

SEMPRE



Acordamos de manhã, fazemos os movimentos do costume. Movimentos que nos
conhecem tão bem, nem precisam que pensemos neles. São automáticos, fazem
tudo sózinhos. É natural, a familiaridade torna-os cúmplices da nossa sonolência.
A água corre na banheira, as gavetas abrem e fecham, os livros aprontam-se para
entrar na pasta, as janelas ficam receptivas. Estamos prontos, as pernas começam
a conduzir-nos para a porta da rua, parece que vamos sair, como nos outros dias,
pelos motivos de sempre. Não sabemos que é tarde, não estamos atentos. E de
repente voltamos a ser meninos, a chorar pela mãe, a procurar um cantinho para
fugir do medo, a querer voltar atrás para refazer aquele instante, mas é tarde.
Tivémos todos, talvez, os nossos anjos, ao menos uma vez na vida. Por vezes não os
escutámos quanto devíamos, eles falam baixinho. Não adormecemos ao seu peito,
não reparámos nos seus olhos e era preciso e já não é preciso porque é tarde. Eles
entram nas nossas vidas, mansos, e um dia abrem as asas e partem, antiquíssimos.
E deixam testamento, sempre.
[P]

Fotografia > Anónimo, Portugal
> Efeito de nuvens, s/d (déc. 1920?), (foto ©
FH/CRO)
[R]

Etiquetas:

8 Comentários:

Anonymous Anónimo escreveu...

"O céu sobre Berlim" encontra o céu sobre Belém.

Esta fotografia é mesmo bonita e enigmática, onde a encontraram ?

22 setembro, 2006 09:18  
Anonymous Anónimo escreveu...

Agora fiquei num silêncio sem palavras ao ler o que PropranoLol escreveu. Será que podemos abandonar os anjos? Será que eles não voltam sempre para nós sob uma ou outra forma? Será que o anjo não estará sempre no mesmo sítio, cá dentro?É quando nos esquecemos de nós que o perdemos de vista? É quando nos perdemos de nós que o esquecemos? Não sabemos?

Um abraço

22 setembro, 2006 18:18  
Anonymous Anónimo escreveu...

Esta fotografia e outra, com o mesmo tipo de enquadramento (muito céu e paisagem urbana rasante na margem inferior), pertencem à colecção privada do Ultraperiferico. Suponho que ambas foram obtidas por um fotógrafo amador, talvez em localidades do sul, possívelmente Algarve. A imagem reproduzida foi sujeita a tratamento digital, para poder integrar este post, mas sem interferir na sua "magia" original. Em todo o caso, esta fotografia mostra um certo arrojo compositivo e preocupações quase modernistas, atendendo à época.

23 setembro, 2006 00:57  
Anonymous Anónimo escreveu...

Tarde respondo a Bala, mas como é de tarde e não de cedo que se trata, respondo na mesma, talvez Bala volte a esta "entardecida" caixa de comentários. Para dizer: vistas as coisas por esta perspectiva, digamos íntima, o que eu quis dizer é que se os anjos deixam testamento, significa que não os abandonamos, não os perdemos, não os esquecemos: pressupõe-se que o testamento é aceite.

25 setembro, 2006 16:09  
Blogger Aldina Duarte escreveu...

Anjo Inútil

Passou um anjo de rastos
Na serra da minha vida
O sangue dele nos cardos
Ainda hoje tem vida

Rasgou as asas na febre
De me levar mais além
Por esse amor que me teve
Amei-o como a ninguém.

Luís de Macedo

Até sempre

26 setembro, 2006 02:30  
Anonymous Anónimo escreveu...

Obrigado, Aldina!

26 setembro, 2006 03:51  
Blogger Rui escreveu...

Piloto automático.
Útil enquanto nos guia o corpo nas fintas que fazemos aos móveis, ao trânsito, aos outros. Poupa-nos a energia da decisão, da escolha. Inútil quando nos distancía dos colos, dos afectos, de quem nos quer.
Conseguissemos nós escutar para além dos automatismos.

28 setembro, 2006 14:38  
Anonymous Anónimo escreveu...

Para responder a Rui, cito J.Tolentino Mendonça:
Ontem começava a clarear/o ar frio que vinha dos campos/jujguei-o de passagem e afinal/era um segredo que meu corpo/de uma vez por todas contava/ao meu corpo.
Os poetas dizem, e nós não os escutamos o suficiente, acho que é isso.

29 setembro, 2006 01:27  

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