sexta-feira, março 02, 2007

QUOTIDIANO



Nove da manhã. Grande fila de espera (não era bicha que se dizia?) na paragem do
autocarro. Cerca de trinta pessoas aguardam a chegada do 35 que, pelo horário da
Carris, deveria ter chegado há cerca de meia-hora. Mas isso já ninguém espera,
porque não há grande memória de que o 35 ou outro qualquer autocarro cumpra os
horários jocosamente afixados nas paragens desta nossa desorganizada Lisboa.
Das cerca de trinta pessoas, quase vinte são idosas. Penso nas questões demográficas
e no envelhecimento da população...Nisto chega o dito autocarro, subindo com
dificuldade a rua, devido à sobrelotação que já se vislumbra à distância. Grande
alvoroço porque "a ver se consigo entrar", "se calhar nem pára" e porque "em terra
é que eu não fico" e lá nos vamos atafulhando no parco
espaço disponível. Grandes
apertos e empurrões e segue a viatura.
Como de costume, as velhotas que acabam de entrar, deixando para trás alguns
estudantes e pessoas que se dirigem para o trabalho, irão sair uns 300 metros à
frente, perto do mercado, onde verificarão o preço das alfaces, entre dois ou mais
dedos de conversa.
Uma das senhoras, particularmente agitada, decide queixar-se das condições do
transporte, enquanto (não) abre espaço com os cotovelos (afinal teria que preparar
a saída para daí a nada - o tempo da sua viagem). Segue-se grande convulsão que,
felizmente, dura pouco, porque o mercado é já aqui... O suficiente, no entanto, para
umas doses de encontrões, insultos e arranhadelas.

Parece haver uma procura das situações de "hora de ponta" por parte dos lisboetas
mais idosos - seja na repartição pública, no centro de saúde ou no transporte
colectivo. Tratar-se-à de uma compensação à solidão? De uma procura de pequenos acontecimentos, sempre prováveis neste tipo de aglomerados? O pequeno atrito que
dará tema de conversa para o resto do dia?
A mim parece-me que sim, que haverá uma procura nos espaços públicos daquilo
que não acontece no espaço privado. No entanto, a escolha faz-se mais pelo critério
da agitação do que pelo critério da qualidade, mais pela (des)inserção em situações
propiciadoras de reacções básicas do que por aquelas que ajudam a elevar o
indivíduo. O "conforto" e confronto da multidão como panaceia perversa da solidão e
falta de contacto afectivo... Lembro-me daquelas crianças que, para atrair a atenção,
fazem maldades...
[B]

Pintura > Hans Baldung Grien (c.1484-1545), Alemanha
> As Três Idades do Homem e As Três Graças, 1531, col. Museo del Prado, Madrid.
[R]

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10 Comentários:

Blogger Aldina Duarte escreveu...

O autocarro é uma escola de solidariedade para quem como eu cresceu num bairro social com as deficiências quotidianas acrescentadas que se conhecem em relação aos transportes públicos e afins... Hoje em dia, não tenho carro e não quero, até ver, mas na verdade os meus horários de luxo permitem-me andar nos transportes públicos sempre a horas pacifícas e com lugar sentado...


Até sempre!

02 março, 2007 20:05  
Anonymous Anónimo escreveu...

Roteia,

conhecer a dureza da vida é humano;não querer ver a beleza dela é triste.

Já estava com saudades...

02 março, 2007 23:35  
Anonymous Anónimo escreveu...

Aldina


De facto, parece-me que a solidariedade estará um pouco arredada deste tipo de cenários, antes patente nas grandes mobilizações a favor de beneficiários anónimos - mas bem reais,claro.

E que sorte essa de se poder escolher a hora de circular pela cidade.E pensar que estes de que fala o post também podem fazê-lo e deitam esse luxo ao lixo...

Até sempre e até breve!

02 março, 2007 23:46  
Anonymous Anónimo escreveu...

Encontrões, arranhadelas, cotoveladas, empurrões. Coisa de pobres? Sim, coisa de pobres. No outro extremo, tão-extremo-como, mais-extremo-que, em viaturas topo de gama com motorista, em condomínios de luxo com court de ténis, outros pobres, tão-pobres-como, mais-pobres-que, dão arranhadelas, cotoveladas. OUTRAS, essas sim.

03 março, 2007 00:53  
Anonymous Anónimo escreveu...

o vazio mental é uma coisa terrível, mas o enriquecimento espiritual pode fazer-se em qualquer lado, não necessita de exposições ou espectáculos.
Há quem não tenha tido escolha na vida que teve de levar, vida essa que não lhe deu talvez a oportunidade de conhecer algo para além do quotidiano.

04 março, 2007 00:04  
Anonymous Anónimo escreveu...

L'Oiseau,

Não posso concordar mais. Com efeito, mais do que pobreza económica, trata-se de pobreza de espírito e esta pode manifestar-se no utente público como no condutor de um automóvel topo de gama, sendo que este terá menos desculpa, por ter acesso a mais opções...

05 março, 2007 11:55  
Anonymous Anónimo escreveu...

Mário,
Claro que os espaços de elevação do espírito e de apreciação de beleza não se confinam aos museus. Esse espaço é interior, a procura é interior e acaba por ter como consequência comportamentos públicos...até no quotidiano.

05 março, 2007 11:58  
Anonymous Anónimo escreveu...

Os comportamentos sociais sob anonimato são surpreendentes, irracionais, não está activada a auto-crítica, o sentido da 'compostura', do 'parece bem'. Nos transportes públicos ainda se dá a cara, mas veja-se o que acontece nos transportes privados. A forma 'primitiva' como os condutores se insultam só é possível porque a identidade não está presente e o anonimato desencadeia as pulsões básicas. Se por casualidade o condutor vizinho fosse identificável como o sr. Pacheco da pastelaria, ou a D. Cacilda do rés-do-chão, a situação seria automaticamente diferente.

07 março, 2007 00:33  
Anonymous Anónimo escreveu...

São os heróis do volante, já não do mar.
Pobre povo, já não tão nobre.
Nação valente, mas em tom boçal.

08 março, 2007 10:32  
Blogger bettips escreveu...

Mais um texto do real quotidiano, eu nem vivo aí mas ====s. E os comentários são deliciosos, ao nível dumas "Farpas"!. Abç

12 março, 2007 02:29  

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