QUOTIDIANO

Nove da manhã. Grande fila de espera (não era bicha que se dizia?) na paragem do
autocarro. Cerca de trinta pessoas aguardam a chegada do 35 que, pelo horário da
Carris, deveria ter chegado há cerca de meia-hora. Mas isso já ninguém espera,
porque não há grande memória de que o 35 ou outro qualquer autocarro cumpra os
horários jocosamente afixados nas paragens desta nossa desorganizada Lisboa.
Das cerca de trinta pessoas, quase vinte são idosas. Penso nas questões demográficas
e no envelhecimento da população...Nisto chega o dito autocarro, subindo com
dificuldade a rua, devido à sobrelotação que já se vislumbra à distância. Grande
alvoroço porque "a ver se consigo entrar", "se calhar nem pára" e porque "em terra
é que eu não fico" e lá nos vamos atafulhando no parco espaço disponível. Grandes
apertos e empurrões e segue a viatura.
Como de costume, as velhotas que acabam de entrar, deixando para trás alguns
estudantes e pessoas que se dirigem para o trabalho, irão sair uns 300 metros à
frente, perto do mercado, onde verificarão o preço das alfaces, entre dois ou mais
dedos de conversa.
Uma das senhoras, particularmente agitada, decide queixar-se das condições do
transporte, enquanto (não) abre espaço com os cotovelos (afinal teria que preparar
a saída para daí a nada - o tempo da sua viagem). Segue-se grande convulsão que,
felizmente, dura pouco, porque o mercado é já aqui... O suficiente, no entanto, para
umas doses de encontrões, insultos e arranhadelas.
Parece haver uma procura das situações de "hora de ponta" por parte dos lisboetas
mais idosos - seja na repartição pública, no centro de saúde ou no transporte
colectivo. Tratar-se-à de uma compensação à solidão? De uma procura de pequenos acontecimentos, sempre prováveis neste tipo de aglomerados? O pequeno atrito que
dará tema de conversa para o resto do dia?
A mim parece-me que sim, que haverá uma procura nos espaços públicos daquilo
que não acontece no espaço privado. No entanto, a escolha faz-se mais pelo critério
da agitação do que pelo critério da qualidade, mais pela (des)inserção em situações
propiciadoras de reacções básicas do que por aquelas que ajudam a elevar o
indivíduo. O "conforto" e confronto da multidão como panaceia perversa da solidão e
falta de contacto afectivo... Lembro-me daquelas crianças que, para atrair a atenção,
fazem maldades...
[B]
Pintura > Hans Baldung Grien (c.1484-1545), Alemanha
> As Três Idades do Homem e As Três Graças, 1531, col. Museo del Prado, Madrid.
[R]

Nove da manhã. Grande fila de espera (não era bicha que se dizia?) na paragem do
autocarro. Cerca de trinta pessoas aguardam a chegada do 35 que, pelo horário da
Carris, deveria ter chegado há cerca de meia-hora. Mas isso já ninguém espera,
porque não há grande memória de que o 35 ou outro qualquer autocarro cumpra os
horários jocosamente afixados nas paragens desta nossa desorganizada Lisboa.
Das cerca de trinta pessoas, quase vinte são idosas. Penso nas questões demográficas
e no envelhecimento da população...Nisto chega o dito autocarro, subindo com
dificuldade a rua, devido à sobrelotação que já se vislumbra à distância. Grande
alvoroço porque "a ver se consigo entrar", "se calhar nem pára" e porque "em terra
é que eu não fico" e lá nos vamos atafulhando no parco espaço disponível. Grandes
apertos e empurrões e segue a viatura.
Como de costume, as velhotas que acabam de entrar, deixando para trás alguns
estudantes e pessoas que se dirigem para o trabalho, irão sair uns 300 metros à
frente, perto do mercado, onde verificarão o preço das alfaces, entre dois ou mais
dedos de conversa.
Uma das senhoras, particularmente agitada, decide queixar-se das condições do
transporte, enquanto (não) abre espaço com os cotovelos (afinal teria que preparar
a saída para daí a nada - o tempo da sua viagem). Segue-se grande convulsão que,
felizmente, dura pouco, porque o mercado é já aqui... O suficiente, no entanto, para
umas doses de encontrões, insultos e arranhadelas.
Parece haver uma procura das situações de "hora de ponta" por parte dos lisboetas
mais idosos - seja na repartição pública, no centro de saúde ou no transporte
colectivo. Tratar-se-à de uma compensação à solidão? De uma procura de pequenos acontecimentos, sempre prováveis neste tipo de aglomerados? O pequeno atrito que
dará tema de conversa para o resto do dia?
A mim parece-me que sim, que haverá uma procura nos espaços públicos daquilo
que não acontece no espaço privado. No entanto, a escolha faz-se mais pelo critério
da agitação do que pelo critério da qualidade, mais pela (des)inserção em situações
propiciadoras de reacções básicas do que por aquelas que ajudam a elevar o
indivíduo. O "conforto" e confronto da multidão como panaceia perversa da solidão e
falta de contacto afectivo... Lembro-me daquelas crianças que, para atrair a atenção,
fazem maldades...
[B]
Pintura > Hans Baldung Grien (c.1484-1545), Alemanha
> As Três Idades do Homem e As Três Graças, 1531, col. Museo del Prado, Madrid.
[R]
Etiquetas: Hans Baldung Grien, idades
10 Comentários:
O autocarro é uma escola de solidariedade para quem como eu cresceu num bairro social com as deficiências quotidianas acrescentadas que se conhecem em relação aos transportes públicos e afins... Hoje em dia, não tenho carro e não quero, até ver, mas na verdade os meus horários de luxo permitem-me andar nos transportes públicos sempre a horas pacifícas e com lugar sentado...
Até sempre!
Roteia,
conhecer a dureza da vida é humano;não querer ver a beleza dela é triste.
Já estava com saudades...
Aldina
De facto, parece-me que a solidariedade estará um pouco arredada deste tipo de cenários, antes patente nas grandes mobilizações a favor de beneficiários anónimos - mas bem reais,claro.
E que sorte essa de se poder escolher a hora de circular pela cidade.E pensar que estes de que fala o post também podem fazê-lo e deitam esse luxo ao lixo...
Até sempre e até breve!
Encontrões, arranhadelas, cotoveladas, empurrões. Coisa de pobres? Sim, coisa de pobres. No outro extremo, tão-extremo-como, mais-extremo-que, em viaturas topo de gama com motorista, em condomínios de luxo com court de ténis, outros pobres, tão-pobres-como, mais-pobres-que, dão arranhadelas, cotoveladas. OUTRAS, essas sim.
o vazio mental é uma coisa terrível, mas o enriquecimento espiritual pode fazer-se em qualquer lado, não necessita de exposições ou espectáculos.
Há quem não tenha tido escolha na vida que teve de levar, vida essa que não lhe deu talvez a oportunidade de conhecer algo para além do quotidiano.
L'Oiseau,
Não posso concordar mais. Com efeito, mais do que pobreza económica, trata-se de pobreza de espírito e esta pode manifestar-se no utente público como no condutor de um automóvel topo de gama, sendo que este terá menos desculpa, por ter acesso a mais opções...
Mário,
Claro que os espaços de elevação do espírito e de apreciação de beleza não se confinam aos museus. Esse espaço é interior, a procura é interior e acaba por ter como consequência comportamentos públicos...até no quotidiano.
Os comportamentos sociais sob anonimato são surpreendentes, irracionais, não está activada a auto-crítica, o sentido da 'compostura', do 'parece bem'. Nos transportes públicos ainda se dá a cara, mas veja-se o que acontece nos transportes privados. A forma 'primitiva' como os condutores se insultam só é possível porque a identidade não está presente e o anonimato desencadeia as pulsões básicas. Se por casualidade o condutor vizinho fosse identificável como o sr. Pacheco da pastelaria, ou a D. Cacilda do rés-do-chão, a situação seria automaticamente diferente.
São os heróis do volante, já não do mar.
Pobre povo, já não tão nobre.
Nação valente, mas em tom boçal.
Mais um texto do real quotidiano, eu nem vivo aí mas ====s. E os comentários são deliciosos, ao nível dumas "Farpas"!. Abç
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