domingo, novembro 19, 2006

A CAIXA



Um dos principais contributos da blogosfera enquanto meio de comunicação reside
na possibilidade de debater ideias com os leitores, bloggers ou não, através da caixa
de comentários, ou caixa de diálogo como prefiro chamar-lhe. Visitantes que
antes desconhecíamos escrevem o que pensam sobre determinado assunto, por
vezes alargando o sentido de um post, outras vezes trazendo luz sobre uma ideia.
Estabelecem-se cumplicidades, criam-se laços pessoais, recolhem-se impressões
sobre o que vamos fazendo, enriquecem-se análises e perspectivas, aprende-se
com o ponto de vista do outro.
Alguns bloggers optam por fechar a caixa, uns para evitar comentários indesejados,
outros por mero desinteresse, ou simplesmente porque utilizam a net como
utilizariam qualquer outro meio para publicação dos seus textos, outros ainda
fazem-no por uma questão de pose, de indiferença estudada.
Temos presente que os parcos hábitos de diálogo na sociedade portuguesa são um
problema antigo, coisas de um país que viveu longamente isolado do mundo. No
Ultraperiférico, procuramos dar tanta atenção aos comentários como aos nossos
posts. Aqui fica hoje, com o devido destaque, este comentário deixado por Paulo
no post anterior.

paulo escreveu...
A economia de mercado, o capitalismo, são portadores de injustiça e alienação.
A turba consome, procria e produz. São clientes, contribuintes, recursos
humanos. Tudo no presente contínuo. O consumo é o prémio por bom comportamento. Pensar não é uma tarefa da turba. É até censurável.
Inconsciência de si, mundo plano, vida dirigida: entes amestrados. Não há
escravos nem proletários, nem sequer devotos de uma religião do dinheiro,
apenas peças de uma engrenagem social que produzem de um lado para
consumir do outro.
Vidas em meia pensão não têm deuses nem mitos outros que os que formam
acerca do redil mental em que existem. Como poderiam ter se acabou o
passado, se não há origem, se as palavras perderam os étimos; de facto não
há palavras só há marcas. Têm TV. Quando desligam a TV (a voz do dono)
dormem. Se desligarem muito tempo perdem-se. Se nunca mais ligaram é
porque morreram.
Talvez só a guerra, a fome, a morte e os outros males que saíram da caixa,
ensinem um dia a partilhar a escassez. Talvez o gesto de Pandora não tenha
sido um castigo. Ou talvez a esperança fosse também um castigo.
18 Novembro, 2006 04:18
Objecto > Lourdes Castro (n.1930), Portugal
> Caixa alumínio com caixa de aguarelas, 1963, Col. Centro de Arte Moderna/FCG,
Lisboa
(sobre Lourdes Castro v. tb. aqui).
[R]

[Adenda > 20.11.2006]
Lourdes Castro realizou uma série de caixas em "assemblage" no início da década de
1960, antes de se dedicar às sombras que viriam a definir o seu percurso posterior.
A artista vivia então em Paris, para onde partira em 1957 fugindo da pacatez
medíocre da capital portuguesa, e por lá fundou com René Bertholo o grupo KWY
(1958-1963), cuja designação brincava com as três letras ausentes do alfabeto
português ("Ká Wamos Yndo", disse alguém).
Acerca das suas caixas Lourdes Castro escreveu em 1961: "(...) Eu colo tudo o que
é para deitar fora, todas as tralhas que já não servem para nada, velhas coisas
usadas, novas, muito novas, sem graça, colo-as umas ao lado das outras,
empilhadas ou seguindo linhas, não sei quais, espaços em volta ou espaços
nenhuns,
cheios. Pinto tudo de alumínio. É isto."
[R]

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20 Comentários:

Blogger armandina maia escreveu...

Nunca nos canasamos, por muito que o sono nos alicie o olhar pesado, de ler e tresler estes textos e estas formas.
armandina

20 novembro, 2006 01:15  
Anonymous Anónimo escreveu...

E nós por cá, Armandina, gostamos das tuas passagens, mesmo ensonada, por esta caixinha de diálogo. Vamos assim adicionando "ferramentas" às imagens que nos cercam e procurando ânimo nos dias cinzentos.

20 novembro, 2006 02:30  
Anonymous Anónimo escreveu...

Paulo,
Este seu comentário daria para dedicarmos um blog específico ao tema.
Penso que a turba não pensante e alienada que descreve é o lugar da não esperança. Para mim, o indivíduo, o ser, é o lugar da esperança. E se esta pode parecer um castigo quando sofre o golpe do desencanto, da amorfia, da visão do homem-máquina ou do homem-massa e da sua mediocridade, como dizia Ortega y Gasset, não deixa de ser o motor que leva o ser mais além. A realidade é a do filtro - ou das lentes - que escolhemos e sem a da esperança, nem nos aperceberímos do mal. Desse ponto de vista, ela pode ser um castigo, mas um castigo que nos torna conscientes.
Na passada sexta-feira, Aldina Duarte dizia no Público, a propósito do seu último disco, Crua, que este poderia ter como subtítulo "quanto maior é a luta, maior é a esperança". Não tenho mais nada a acrescentar, a não ser as palavras da própria Aldina: "Estou farta das lutas contra isto ou contra aquilo. Estou mais empenhada agora numa luta "a favor".

20 novembro, 2006 10:50  
Blogger AM escreveu...

Desde que ando nisto, sempre me fizeram alguma confusão os blogs sem caixa de comentários...
"corpo monstruoso, sem buracos..."

20 novembro, 2006 21:13  
Anonymous Anónimo escreveu...

Bolota:
O que me parece essencial no comentário de Paulo é a sua leitura do sistema e os reflexos na turba. Mas se ele fala do capitalismo, eu prefiro o termo economicismo, visto que no plano ideológico é esta a corrente dominante, aliás, única e até ver sem alternativas. A esperança de um equilíbrio na "partilha da escassez" parece que já não chega para acordar a turba nem os seus dirigentes, é mesmo preciso estar contra ou, por outras palavras, ser a favor estando contra.

21 novembro, 2006 02:43  
Anonymous Anónimo escreveu...

AM:
Sinto o mesmo, embora em muitos casos seja compreensível e legítimo.

21 novembro, 2006 02:48  
Anonymous Anónimo escreveu...

post muito sensato (+1x). acho que não me fica muito mal salientar, por ser rara, essa «tanta atenção aos comentários como aos posts».
o comentário transcrito também mereceu ser salientado. anotei sobretudo aquela parte «talvez só a guerra, a fome, a morte e os outros males que saíram da caixa,
ensinem um dia a partilhar a escassez».

finalmente, para não repetir algumas razões para ter uma caixa fechada, gostava de acrescentar que, por estranho que pareça, a ausência de comentários indesejados também pode levar ao fecho de uma caixa, i.e., há «corpos monstruosos sem buracos» (excelente imagem) que, à repetida troca de afectos e concordâncias, e à inexistência de discussões acaloradas durante meses a fio, preferem continuar... sem buracos. É triste que assim seja, claro, mas dizem que é natural que os monstros sejam tristes. Eu prefiro acreditar que são demasiado sensíveis ao tédio.

22 novembro, 2006 01:17  
Anonymous Anónimo escreveu...

(um enter apressado resultou num comentário anónimo. ora bolas)

22 novembro, 2006 01:23  
Blogger paulo escreveu...

Bolota:
Alguém que escolhe, nas horas permitidas ou nas horas proibidas, reflectir é alguém que está em oposição à turba. Consciência é angústia. E isso é vital (Ser).
Quanto à esperança, não é tanto ele distrair-nos do mal, como impedir-nos de agir. A esperança boa é na acção.
Lutar a favor é lutar contra.
Roteia:
Sabemos que quem tem o poder raramente abdica; sendo assim a esperança de partilha é uma ilusão, é um mal que saiu da caixa. Em contrapartida, a desgraça que incita à acção, é um bem.
Parabéns pelo vosso blog. É um lugar de resistência. Obrigado pela exposição que deram ao meu comentário.

22 novembro, 2006 02:16  
Anonymous Anónimo escreveu...

José Quintas,
Não foi anónimo, foi só Jos!

Paulo,

Concordo que a consciência está em oposição à turba.Espero que não tenha concluído que o meu comentário ía no sentido contrário.
O que eu penso é que a consciência pessimista é paralizante e faz parte de nós. Não creio que seja a desgraça em si que incita à acção: é, sim, a crença (esperança?) na nossa força para a superar. Assim, o sentido de construção ("a favor")vem da esperança consciente, que nasce até do próprio sofrimento.
Nem sempre é preciso destruir para construir.

22 novembro, 2006 11:15  
Anonymous Anónimo escreveu...

José Quintas:
Grato pela presença e pelas palavras, que são um contributo ao diálogo, sempre muito bem-vindo nesta caixinha.
O desejo do indesejado, a propósito de uma caixa por abrir, é uma bela contradição. Compreendo agora ainda melhor o desejo de "spam", mas não será desta que ajudarei a apaziguar esse monstro sensível ao tédio. Em todo o caso, citando uma amiga sábia também presente neste post, ocorre-me que "l'éspace on le porte en soi" (para quem não ler francês, "o espaço trazê-mo-lo connosco"). Afinal, como conviver com um monstro triste (e inerte, leia-se desactivado) se não testarmos a sua imprevisível ferocidade?

22 novembro, 2006 11:34  
Anonymous Anónimo escreveu...

Paulo:
Não me ocorre outra palavra que melhor defina os motivos que nos levaram a criar este blogue do que a palavra resistência. Apraz-me que o tenha salientado. Enquanto conseguirmos a disponibilidade para continuar o Ultraperiférico (e vai sendo difícil encontrar o tempo necessário) e enquanto mantivermos a esperança de que ajudamos a "salvar a humanidade", um nadinha presunçosos, pretendemos permanecer alheios à frivolidade ambiciosa das auto-promoções tão radicadas na nossa lusitana ultraperiferia cultural.
Também só acredito que "a esperança é na acção", que lutar a favor é lutar contra. Mas penso, como Bolota, que melhor que destruir é (re)construir. O que está feito, está feito. O que está por fazer, está por fazer.
A minha questão, no que diz respeito ao economicismo global, é esta: Como encontrar alternativas no campo da democracia se sabemos que os poderes políticos democraticamente eleitos mimetizam os mecanismos do mercado? Que esperança em poderes eleitos que venham anunciar (prometer) a "partilha da escassez"? Que esperança em soluções não autoritárias, não ditatoriais, de transformação da ideologia e prática políticas? Que esperança no papel das universidades e das elites (artistas, poetas, cientistas, filósofos, jornalistas, bloggers) para modificar o estado anestésico da turba?

22 novembro, 2006 13:07  
Anonymous Anónimo escreveu...

Será uma utopia? Cheirinho de resposta vindo dos Himalaias e propagado pelo ocidente, conforme post de BaLa aqui no Ultra, em 24 de Maio...

22 novembro, 2006 14:38  
Anonymous Anónimo escreveu...

UTOPIA
(Zeca Afonso)

Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
Gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo, mas irmão
Capital da alegria

Braço que dormes
nos braços do rio
Toma o fruto da terra
É teu a ti o deves
lança o teu desafio

Homem que olhas nos olhos
que não negas
o sorriso, a palavra forte e justa
Homem para quem
o nada disto custa
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio, este rumo, esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
na minha rota?

22 novembro, 2006 14:44  
Anonymous Anónimo escreveu...

Ó Bolota, tu já viste isto? Agora a menina Bala arruma-nos com cantorias. E pensando bem, até nem está mal...arrumado.

22 novembro, 2006 15:16  
Anonymous Anónimo escreveu...

Ele há cada coisa.... mas também acho que bem arrumado ficou na caixa.

22 novembro, 2006 17:38  
Anonymous Anónimo escreveu...

Roteia, à tua questão "como conviver com um monstro triste (e inerte, leia-se desactivado) se não testarmos a sua imprevisível ferocidade?", só me ocorre responder com o que o Adolfo terá dito à Eva nos últimos dias no bunker: "Oh... eu tentei... se tentei..."

já agora (para não protestar contra o exagero «inerte...desactivado»:)), deixa-me contestar um pouco essa noção que entreli num teu comentário mais acima e que se pode encontrar em muitas mais vozes noutros sítios:
a de que "a turba está anestesiada", noção essa onde se encontra implícito que existe uma "élite" que não está. Aliás, ao dizê-lo exactamente assim, já estás a olhar de cima para uma multidão de infelizes/ignorantes no fundo da pirâmide.
Felizmente, as coisas não se passam, nunca se passaram exactamente assim. Para não recuar aos tempos em que os grandes "abanões" sociais eram causados e levados a cabo pela "turba", basta reparar no que o governo tem vindo a fazer ao mundo das artes, e comparar a contestação incipiente desse meio com o efeito que uma manif com muitos velhinhos da CGTP provocou na postura do governo e dos fazedores de opinião.
Visto assim, quem andará a cheirar mais clorofórmio? as minorias extralúcidas ou os bárbaros?

22 novembro, 2006 23:47  
Anonymous Anónimo escreveu...

José Quintas:
Quanto ao exagero do "inerte... desactivado", julguei que estava a prestar um bom serviço anti-tédio. Não estava?
Mas vamos ao resto:
A turba somos nós todos e não coloco as coisas entre bons e maus, entre poderosos e dominados, e por aí fora. Também não penso que as minorias intelectuais valham grande coisa, que estejam acima ou abaixo seja do que for. O que penso sobre a dimensão humana, sobre as pessoas quando individualmente consideradas, é que todas possuem igual dignidade, embora este reconhecimento nas nossas sociedades tão modernas e civilizadas se fique (quase só) pelas declarações universais de direitos.
Creio portanto que não me fiz entender quando referi "o estado anestésico da turba". Mas assumo que existem élites e que estas exercem formas de poder que lhes conferem responsabilidades acrescidas. Portanto, responsabilidades que não podem ser entendidas como superioridades. Será que cada qual se interroga sobre a parte de responsabilidade que lhe cabe?

23 novembro, 2006 01:05  
Anonymous Anónimo escreveu...

grato pelo esclarecimento. quanto à última questão, na parte que me toca, e sem me referir a blogues (que não posso deixar de considerar um passatempo), mas antes à minha actividade profissional, acredito que faço o que me compete e um pouco mais ainda, tanto no que diz respeito ao trabalho em si, como em não perder muitas oportunidades para espicaçar colegas mais conformistas. passe o disparate (+1), creio que só me falta ser terrorista

23 novembro, 2006 12:51  
Anonymous Anónimo escreveu...

José Quintas:
Ainda não consegui parar de rir. Grato, também eu, pelo teu esclarecimento.

23 novembro, 2006 13:09  

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