quarta-feira, abril 05, 2006

PORTUGAL ULTRAPERIFÉRICO
Ideologia e idealização na "Era Sócrates"




Abundam em Portugal, tanto nos orgãos de informação como na blogosfera,
idealizações à esquerda e à direita, desfasadas do interesse público, centradas em
umbigos ou interesses individuais, grupos ou poderes instalados.
Porém, para que se obtenha alguma justeza na análise das actuais políticas
governativas é indispensável realizar exercícios de comparação entre vários
governos, mais à direita ou mais à esquerda, que nos têm governado nas últimas
décadas: desde os tempos conturbados da revolução, passando pelos anos da
conquista da normalidade democrática, com Soares, os tempos da oportunidade
perdida, com Cavaco, as desilusões da era Guterres, até aos tempos mais recentes
de crises empoladas, artificiais umas, negligenciadas ou convenientes outras.
E é aqui que José Sócrates começa a ganhar aos pontos, governando em tempo de
"vacas magras", sem dramatização, seguindo estratégias inteligíveis e necessárias.

Constatamos que as diferenças esquerda/direita se esbateram através de sucessivos
cortes ideológicos, permanecendo a ideologia a níveis residuais (por vezes apenas
folclóricos), mesmo no discurso político. Porque, como sabemos, as diferenças
ideológicas foram sendo substituídas após a queda do Bloco de Leste, paulatinamente,
por uma ideologia única globalizadora chamada ECONOMICISMO, a que alguns
continuam a chamar capitalismo ou economia de mercado e outros chamam
pragmatismo ou outras coisas lisonjeiras.
Mas se os "ismos" tradicionais não têm resolvido os problemas estruturais do país, se
estamos como estamos, devemos então assumir um falhanço colectivo e abandonar
partidarites inúteis.

Supõe-se que Sócrates entende bem estes fenómenos e procura substituir diferenças
ideológicas por novas formas de tensão, como modernidade vs. conservadorismo, ou
cosmopolitismo vs. localismo. Se formos por este caminho de criatividade e inteligência, poderemos dizer que se iniciou uma nova era.
[R]

Fotografia > José Artur Leitão Bárcea (1871-1945),
> Sem Título, Lisboa, c. 1905 (foto © FH/CRO)

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7 Comentários:

Blogger João Dias escreveu...

Roteia:
Percebo e até concordo em parte, parece-me que foste extremamente feliz em conseguir focar o melhor de Sócrates e esconder as suas imensas "falhas" (na realidade não são falhas, são prioridades do mesmo das quais eu discordo).

Ou seja concordo com isto:
"...procura substituir diferenças
ideológicas por novas formas de tensão, como modernidade vs. conservadorismo, ou
cosmopolitismo vs. localismo."

No entanto as diferenças ideológicas existem. Em termos base, e de uma forma simples, o que separa o meu (perigoso esquerdista) pensamento de Sócrates é que para mim a economia sujeita-se ao indivíduo, para Sócrates o indivíduo sujeita-se à economia.

Mais, não me agrada nada como se fala de economia, agente personificado, no entanto sem culpa nem culpados. Parece que a economia é um idoso doente a que todos os trabalhadores têm de se sujeitar a sobrecargas e exploração para que este melhore.
Não, a economia não está doentinha, não são factores extra-sensoriais que condicionam a economia, não é o vento que sopra...
A economia é um produto exclusivamente humano, não há agentes externos adimensionais, existe sim o perfil de incentivar à competição da globalização, sem no entanto ser claro nas regras do jogo. Quem perde nem sempre vai para casa e tenta outra vez, quem perde não é "quem joga", é um jogo em que somos jogados.

Eu penso de forma diferente de Sócrates, eu tenho outras prioridades, eu tenho em mente outros projectos...
Agora sabendo isto, imagina o quão difícil é para mim "digerir" estas palavras:

"Constatamos que as diferenças esquerda/direita se esbateram através de sucessivos
cortes ideológicos, permanecendo a ideologia a níveis residuais (por vezes apenas
folclóricos), mesmo no discurso político. "

Não é que isso não seja verdade para um certo espectro da política, mas como calculas isso diz muito pouco à minha realidade concreta. Sinto-me fora dessa realidade, não me sinto transfigurado, sinto-me irreal...mas não sou pois não?

:-)

06 abril, 2006 00:53  
Blogger R.O. escreveu...

Caro João Dias:
Levantas tantas e tão pertinentes questões que nem sei por onde começar.
Creio que na esquerda vivemos numa encruzilhada, entre um património ideológico que é o nosso e uma praxis economicista globalizada. Dividimo-nos entre a crítica aos excessos do mercado e a nossa própria incapacidade de resistir aos bens com que esse mesmo mercado nos alicia para novos hábitos de consumo.
Tens razão quando dizes que a economia deveria estar ao serviço dos homens e não o contrário. Somos consumidores consumidos. É que por detrás do ECONOMICISMO existe um sistema abstracto, de números e operações financeiras, manipulado por gente sem rosto que dita as regras. É um sistema gigantesco do qual depende toda a humanidade. E é nesse barco que também nós navegamos em Portugal.

Perguntarás: Então ficamos parados de mãos atadas?
Creio que há muitas coisas que podemos fazer. A primeira de todas é manter, como já fazes, a utopia. A seguir, partindo dessa utopia, é começarmos todos a procurar alternativas ideológicas que reequilibrem o sistema de mercado e o sistema social. Coisa verdadeiramente difícil, mas infelizmente a nossa esquerda parece mais empenhada em guerrilhas fraticidas, cargos e coisas assim.

Voltando a Sócrates. O que começo a ver nele é uma capacidade de lidar com alguns problemas da sociedade actual, enfrentando como se tem visto corporações e interesses instalados. Julgo que o faz com coragem e determinação.
Também o vejo como um político com uma perspectiva modernizadora do país, no sentido da mudança de mentalidades. Mas não o vejo como mero servidor do sistema economicista, e disso se queixa a direita, mas como alguém capaz de participar num complexo jogo de equilíbrios.

06 abril, 2006 03:36  
Blogger João Dias escreveu...

Roteia:
De todo me parece que seja uma utopia o que eu idealizo, acreditar em economia justa não é uma utopia. Basta desbravares o paleio neoliberal de que o Estado não deve interferir no mercado e isso pode-se facilmente tornar um realidade pela força da democracia e vontade das pessoas. Só falta vontade e menos umbiguismo.
As pessoas tem de se perceber que a democracia é a sua voz e o Estado gerido pelos eleitos de uam vontade maioritaria, logo quando alguém menospreza o Estado, o governo está a desprezar de uma maioria. A legimitidade do neoliberalismo Socratista foi lhe concedida pelos eleitores, por isso as minhas críticas, mas essencialmente o respeito pela vontade da maioria. Se as pessoas quiseram um governo assim, então que assim seja.

Não Roteia, não alimento utopias, idealizo justiça e sei que esse é o caminho mais exigente, menos conformista e menos confortável mas para ser sincero até nem é muito complicado, basta querer.

06 abril, 2006 22:15  
Blogger R.O. escreveu...

Caro João Dias:
Referi a utopia não no sentido do irrealizável, mas como motor de arranque para a realização. Enquanto estímulo, convicção, desejo.
Quanto ao "neoliberalismo socratista", respeito e compreendo o teu ponto de vista, mas repara no que escreve a rapaziada neoconservadora liberal em blogs e jornais. Em comparação, Sócrates, desdenhado por essa gente, está de facto à esquerda. Se continuamos a pôr tudo no mesmo saco, estamos a a cair na armadilha, a fazer o jogo deles. E não tarda nada voltamos a ser governados por betinhos e respectivos "tios".

07 abril, 2006 01:34  
Blogger João Dias escreveu...

Roteia:
Não, não estou a pôr tudo no mesmo saco. Digo-te mais quando em Aveiro o PS perdeu para a coligação PSD-CDS eu fiquei bem triste e disse que apesar de preconizar alternativas bem à esquerda do PS não me regozijava com esta passagem de testemunho. Aliás diga-se que em termos de cultura, Souto trouxe algum cosmopolitismo a Aveiro (se é que isso é possível).
Eu sei a diferença entre Sócrates e um Durão ou Marques Mendes, mas continuo a não gostar das políticas de Sócrates.
Eu, e não só, faço uma leitura completamente diferente do que a malta liberal pensa de Sócrates. Este terá entrado pelo espectro político de direita a dentro e isso deixa o PSD em maus lençóis, têm de fazer oposição em constante contradição ou focando o vazio.

Só quero que compreendas que o meu "projecto" é diferente e que por isso não posso ser acrítico só porque existem males maiores. Tenho de estar constantemente a dizer que este tipo não serve mas que os outros ainda são piores. Além disso a esquerda (sanguinária e terrorista) é muitas vezes colocada (pelo PS) em sacos preconcebidos, sem argumentação e sem espírito crítico criam-se imagens fáceis para o "povão" possa marginalizar os pategos que pensam que o "povão" ainda quer ser defendido.

Diga-se que uns dos truques de belo efeito é apelar ao conservadorismo do "povão" e fazer consequentemente tábua rasa das lutas por mais justiça social.


Povão- entidade semi-heterógenea, indivíduo(s) que dedica(m) dois minutos por ano à política e que cuja referência intelectual são "soundbytes" do tipo: "eles querem é mama", "eles prometem mas não cumprem", "eles querem comer criancinhas","devíamos ter mantido as colónias"...

07 abril, 2006 03:52  
Anonymous Anónimo escreveu...

A cada comentário que o João Dias aqui deixa cresce a minha curiosidade em relação ao tal sistema alternativo:que sistema é esse? Sabemos que o actual sistema capitalista apresenta muitas deficiências mas a questão é que não se vislumbra nenhum movimento relevante de cidadãos dispostos a prescindir das vantagens e conforto que ele lhes traz, designadamente tudo o que envolve, por exemplo, a propriedade privada. Assim, o tal projecto alternativo, não utópico consistiria, talvez, num sistema não capitalista mas onde a propriedade privada, o bem estar económico e social, a liberdade e direitos individuais prevalecessem lado a lado...

10 abril, 2006 13:00  
Blogger João Dias escreveu...

Sistema alternativo-
Clareza fiscal, os detentores dos meios de produção não poderiam formar empresas denominadas Limitada ou outro tipo de empresas que vê a sua responsabilidade limitada ao capital social, sistema económico competitivo mas com regulamentação que não permitisse a condenação à pobreza e exploração da mesma (é facílimo fazer isso).
Enfim estão aqui umas pequenas achegas.
Exemplos concretos:
Regulamentação-
empresas com altos lucros não poderiam oferecer salários miseráveis que oferecem.
Tributação sobre os lucros da bolsa.
Favorecer o negócio empresarial vs especulação financeira e bolseira.
Acabar com a especulação imobiliária.
Regulamentação do Estado na actividade económica (não esquecer que no Estado está o governo eleito pelo povo e este seria consequentemente responsável por faser prevalecer a vontade do mesmo).
Qualquer serviço fundamental e imprescindível deve ser pertença do Estado (salvaguardar o interesse do consumidor/cidadão), saúde, água, serviços de registo civil...etc

O sistema capitalista prevê a mão-de-obra como mercadoria, ou seja os trabalhadores, os seus direitos e os seus salários são sujeitos à especulação e à manipulação que seja mais conveniente ao empregador.
Para mim este é um dos pressupostos mais detestáveis, aquele que me oponho com mais firmeza. Se calhar quando vemos pessoas a ficar sem trabalho, empresas a abandonar sem justificação devíamos pensar se isso até não é natural num sistema capitalista, mas é natural, por isso será que existe algum problema mesmo?
Dá para ter uma ideia?

10 abril, 2006 15:55  

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