quarta-feira, setembro 26, 2007

HUMILDADE


Vários autores se têm pronunciado sobre as chamadas três grandes humilhações que
a ciência infligiu à megalomania humana: a cosmológica, a biológica e a
psicológica
. São três bofetadas no egocentrismo da humanidade. A primeira,
quando Copérnico mostrou que a terra, longe de ser o centro do universo, não passa
de uma insignificante parcela do sistema cósmico. A segunda, quando Darwin,
Wallace e os seus predecessores, reduziram a nada as pretensões do homem a um
lugar de eleição na ordem da criação. A terceira, quando Freud demonstrou
(Introdução à Psicanálise) que o eu não é soberano na sua própria casa, onde
sobrevive à custa de uma luta permanente contra um id pulsional e um superego
castigador. Tema polémico e objecto de muitos estudos e contraposições posteriores,
esta afirmação de Freud merece reflexão e permanece actual.
Tal como refere Marie Balmary (La Divine Origine), o efeito Copérnico põe em causa
o lugar do homem, o efeito Darwin ofende a sua genealogia, o efeito Freud atinge a
sua alma. Mas creio que actualmente nos confrontamos com nova humilhação:
sobretudo a partir da II Guerra Mundial, a manipulação humana dos ecossistemas,
o uso e abuso dos combustíveis fósseis, a ausência de critérios bioclimáticos
adequados, acarretaram desequilíbrios que agora se viraram contra nós.
As mudanças climáticas provocadas pelo aumento das emissões dos gases com efeito
atmosférico de estufa, são disso exemplo. Um dos efeitos do aquecimento global neste
século está bem patente no acréscimo da intensidade e frequência das vagas de calor.
Digamos que a natureza mostra que não é propriedade do homem mas sua
proprietária, que não é sua súbdita mas sua soberana, ao implicar a destruição do
homem na mesma medida em que por ele vai sendo destruida. Às três humilhações
do homem pela ciência, sucede assim uma outra, bem mais devastadora, infligida
pela própria natureza que ao ser humilhada exige humildade.
E a humildade é, para a arrogância humana, a suprema humilhação.
[P]

Pintura > Quentin Metsys (1466-1530), Bélgica (Flandres)
> A Duquesa Feia, 1525-30, Col. National Gallery, Londres
[R]

[Adenda > 29 Set. 2007]
O belo e o horrível estão desde há muito presentes na história da arte. Vêmo-los
coexistirem em cada época, nas várias expressões artísticas,
no mesmo autor ou até
numa mesma obra. Partes do mesmo todo, que nos provocam atracção ou repulsa,
interpelando o sentido da arte e da própria condição humana. Faces da mesma
moeda, os contrários potenciam-se, podem detonar-se mutuamente.
Esta Duquesa Feia do grande Quentin Metsys, um dos mestres flamengos que
mais terá influenciado a pintura portuguesa do século XVI, é certamente um retrato
ficcionado de uma dama aristocrata, uma representação caricatural da fealdade
que tantas vezes se esconde atrás dos mais nobres rostos. Ou talvez,
considerando
o contexto religioso da obra de Metsys e de alguns dos seus contemporâneos, como
Hieronymus Bosch,
se trate afinal de uma pintura que cruza metaforicamente o
profano e o sagrado.
[R]

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3 Comentários:

Blogger A Lusitânia escreveu...

Será que a conciliação ainda é possível? Será que ainda haverá hipótese de um sussurro de um murmúrio que as plantas oiçam? E que os nossos ouvidos consigam finalmente escutar o gemido desses seres da sabedoria que são os mochos?
Ou, sublime humilhação, estamos todos destinados à ausência de memória e a ser deglutidos nas águas revoltas?
Hoje o dia encarregou-se de nos lembrar que a água, essa essência divina, pode sempre mais do que nós!

30 setembro, 2007 21:46  
Anonymous Anónimo escreveu...

Mena,
De facto, as alterações climáticas estão a ocorrer a um ritmo mais rápido do que se esperava. È uma questão preocupante para todos, pelo menos de Portugal para lá. Nós por cá, é mais o futebol e as politiquices de consumo caseiro. O costume, portanto.

01 outubro, 2007 00:11  
Blogger paulo escreveu...

Não acho que tenha acontecido humilhação, diria mais angústia. O homem continua a ser “a medida de todas as coisas”. Metáfora e metonímia. Desde a inteligência artificial à ergonomia, blá, blá, blá. E o maior antropocentrismo é a ideia de progresso infinito da humanidade.
A ciência não é uma religião, maugrado muitos; é uma ferramenta para criar tecnologia. Tem impacto político, e por aqui podem vir as verdadeiras humilhações (eugenia, inferno atómico, etc..).
Até que ponto não serão estas reflexões apenas retórica de um certo pensamento ocidental? Um pensamento que já não tem propostas ontológicas fora da ciência económica. Ou terá? E a arte contemporânea? Ainda interpela a condição humana? Terá perdido o valor de uso? Tem só valor de troca?

01 outubro, 2007 00:39  

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