A duas semanas do encerramento da exposição Amadeo de Souza-Cardoso,
Diálogo de Vanguardas na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa (até 14 de
Janeiro), parece que tudo já foi dito. Mas importa agora saber se o país de Amadeo,
o país que em tantos campos continua tristemente alheio à modernidade e à ousadia,
terá finalmente compreendido as palavras provocatórias deste "manifesto" de
Almada Negreiros:
É um facto que a actual exposição da Fundação Gulbenkian tem sido um êxito de
afluência de público, e eu próprio a visitei com o prazer da (re)descoberta. Porém,
tendo em conta que um evento de tal dimensão, dedicado ao mesmo artista, não
ocorrerá nos próximos anos, pergunta-se: terá sido desta que Amadeo foi tratado
como merece, ou estamos perante mais uma oportunidade perdida?
Do meu ponto de vista a exposição é o exemplo acabado da habitual dificuldade em
lidar com os nossos mitos culturais, um fenómeno especificamente português. Desde
logo, apesar dos objectivos (correctamente ambiciosos) de enquadrar a obra de
Amadeo entre os principais vanguardistas europeus do seu tempo, verificamos que
alguns dos autores e obras representadas, não chegam para confrontar certos segmentos do trabalho do artista português. Veja-se, a título de exemplo, a falta de contrapontos significativos às pesquisas futuristas e cubistas de Amadeo, bem como às obras do seu período final, já marcadas pelas inovações dadaístas. É certo que tais lacunas não ficam a dever-se aos propósitos gerais da exposição, mas antes às conhecidas dificuldades das instituições portuguesas em conseguir empréstimos de obras internacionais de primeira linha (por falta de contrapartidas de nível equivalente). No entanto, há três aspectos lamentáveis que, por dependerem inteiramente dos critérios da entidade organizadora, não têm perdão :
o projecto museográfico que, entre outras jóias de pretensiosismo, mostra logo à entrada da exposição uma escultura de Brancusi colocada em frente de uma grande
ampliação de um retrato de Amadeo; o catálogo enorme e luxuoso a que falta, além
de bom senso editorial (e custos a condizer), um grafismo digno e a indispensável
qualidade de impressão e reprodução das obras; e finalmente, a não inclusão das
experiências fotográficas de Amadeo, sobre as quais quase tudo se desconhece,
excepto que o espólio existente, incluindo fotografias, doado no final dos anos 80 pela
viúva do artista à própria Fundação Gulbenkian, se encontra em "tratamento".
Sobre este último aspecto, António Sena revela no seu livro História da Imagem Fotográfica em Portugal (1998):
"Datam de 1915-17 algumas das primeiras fotografias de Amadeo de Souza-Cardoso utilizando sobreposições, nomeadamente no seu retrato com Lúcia, feito em
Manhufe e influenciado pelo «Fotodinamismo Futurista» de Bragaglia. É provável
que o espólio de Amadeo tenha ainda algumas das poucas experiências futuristas
da fotografia portuguesa, mas ninguém, como sempre, deu por isso.
Fotografia > Autor não identificado
> Retrato de Amadeo (auto-retrato?), s/d, s/l (fotografia reproduzida no catálogo da
exposição Amadeo de Souza-Cardoso, Centro de Arte Moderna/FCG, Lisboa, 1983).
Fotografia > Amadeo de Souza-Cardoso, (1887-1918)
> s/t (retrato com sobreposição), Manhufe, c.1916, Col. FCG (in A. Sena, História da
Imagem Fotográfica em Portugal, 1839-1997, ed. Porto Editora, Porto, 1998.
[R]
Etiquetas: Amadeo de Souza-Cardoso, exposições
15 Comentários:
Pelo que me lembro da exposição a escultura de Brancusi, não está "logo a entrada da exposição", (está nas "costas" da entrada, e não está sequer em nenhuma das duas primeiras "salas", à esquerda e à direita da entrada) mas, mais concretamente, ao que é que se refere quando fala nas "jóias de pretensiosismo" do projecto museográfico?
AM:
Uma escultura de bronze dourada com base de pedra, está de facto logo à entrada da exposição, colocada em frente da grande ampliação do retrato fotográfico de Amadeo. De um lado (esq.) Amadeo de Souza-Cardoso, de bóina, do outro lado (dir.) a peça de Constantin Brancusi. Está visto que devemos ler, literalmente "Amadeo, diálogo de... vanguardas".
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Cara Roteia
Dessa não me lembro (já não me lembrava), mas se calhar nem a vi, no meio de tanta gente...
As "Jóias de pretensiosismo" do projecto museográfico só têm a ver com essa "sobreposição" de leitura "literal"?
Achei o projecto de arquitectura de interiores da exposição, muito bem conseguido e eficaz, ao nível dos espaços, das cores, da luz, e de alguma discreta pormenorização.
Mas, se calhar, por projecto museográfico e por arquitectura de interiores, não nos estamos a referir à mesma coisa.
De facto, AM, os projectos arquitectónico e museográfico não são a mesma coisa, mas interrelacionam-se e complementam-se. Estamos todos habituados à qualidade do serviço de museografia da FCG, que realiza para cada exposição um projecto bem articulado com as peças. Do meu ponto de vista não é isso que acontece aqui: este projecto quase serviria para qualquer outra exposição, mas ao mesmo tempo não serviria integralmente qualquer outra. Referindo-me apenas ao piso superior, encontramos uma distribuição simétrica dos espaços, pouco adequada à obra "assimétrica", digamos assim, de Amadeo, com zonas centrais de confluência e destaque que amplificam os aspectos labirinticos da obra em vez de os clarificar. Acresce que para além de Amadeo a exposição integra um vasco conjunto de autores e diversidade de objectos, os quais a meu ver exigiriam outras tantas assimetrias e alguns necessários destaques. E se falta espaço em algumas das zonas, outras há em que as peças têm espaço a mais. Talvez pelos motivos apontados são inúmeras as desproporções de escala e as soluções forçadas.
Quanto às "jóias" referidas, vejam-se as vitrines sobredimensionadas para as máscaras africanas, ou o maior dos quadros de Amadeo engavetado ao lado da sala final.
Apesar do que digo no post, considero que esta é uma importante exposição a não perder. Há aliás muitos factores positivos que não referi apenas por considerar que Amadeo merecia uma concepção museográfica exemplar e, através do ícone que o artista representa, todos nós espectadores merecíamos melhor.
(E já agora, caro AM, Roteia é masculino, corruptela de arroteia, significando aquele que cava ou cultiva a terra)
:) O.K. já registei a "mudança" :)
Quanto ao seu comentário que, à semelhança da posta, muito apreciei e agradeço, vai ao arrepio do que pensei, e ainda penso, sobre a "montagem" da exposição". Gostei desses "aspectos labirínticos" e das vistas (oblíquas) em diagonal, sobre os espaços simétricos... simultaneamente "institucionais", apropriado ao "peso" do(s) artísta(s) e "anárquicos", livres de "espartilho" na maneira de visitar a exposição e de olhar para as obras.
Depois de ler as suas palavras, fiquei com ainda maior vontade de voltar ao Amadeo na FCG.
Feliz ano novo! Quero iniciá-lo com o sempre novo Amadeo.
Até sempre
Muito obrigada Aldina! Também lhe desejo um bom ano de 2007.
Começar com Amadeo parece-me muito bem. E que pena que o país inteiro não comece (e contine) este novo ano com a modernidade e a ousadia de Amadeo.
Desconhecia que Amadeo de Sousa-cardoso tivesse explorado a fotografia. E agora estou curiosa!
Também fico com a sensação que muito mais podia ter sido feito a par da exposição para divulgar a vida e obra deste grande artista português.
Ana Carvalho
http://nomundodosmuseus.wordpress.com
Tentei ir lá no Domingo, mas a fila de entrada era quilométrica, o que é uma boa coisa, tenho de ir lá durante esta semana!
O catálogo é caríssimo, desisti logo de comprar, acho que deveria pelo menos haver uma versão económica (ou então não dei por ela).
Aí está um aspecto em que esta exposição se parece com as grandes exposições de outras cidades europeias: as longas filas de espera para as bilheteiras. Significa isto que Amadeo (finalmente, cem anos depois) tem o banho de multidão que lhe é devido, faltando apenas uma internacionalização compatível com a dimensão histórica do artista.
Ainda há muito que fazer e cabe ao país de Amadeo fazê-lo. Onde está um site bem feito e bem divulgado? Onde está um catálogo com boas reproduções que apeteça folhear?
Não me parece oportuno disutir a obra de Sousa Cardoso que alguns conhecem e outros nunca ouviram falar. O que eu gostaria de ver discutir neste ou noutros espaços-não é a falta de senso pedagogico, que a exposição revela, dado que os organizadores já viram mais exposições do que eu e lá sabem por que decidiram ocultar dados biograficos, correntes da época, movimentos artisticos, etc, etc.também não lhes interessava que o publico - ouvi na TV uma jovem que viu pela primeira vez uma exposição- soubessem quem foi Gabriela Munter, a importancia o Blau Reiter, e estes são exemplos entre outros. Que o que S. Cardoso pensava da pintura e da arte ficasse reduzido a duas frases, se a memória não me falha, eram só duas, aliás duas frases inteligentes e reveladoras da sua posição a Arte e do espirito criador. Outra coisa que me perturba é não perceber que mecanismos foram postos em marcha para criar um exito só comparável aos desafios de footebol.Digam-me que foi um movimento popular expontaneo que sacudiu o país e arrastou multidões de jovens e velhos a esperar horas em duas bichas infidáveis e outros mais timidos e receando passar por ignorantes inscreveram-se numa bicha para ouvir uma "free lancer" chamar a atenção para o movimento das patas dos cavalos e cafés de Paris.
Bem, eu fui dos que esteve nas filas intermináveis... duas horas e meia na bicha para a entrada da exposição, mais meia hora na fila para comprar o bilhete - um total de três horas! Mas não é sobre isto que quero escrever.
Nota positiva para Amadeo e para as suas obras. Nota negativa para a organização da exposição, deixo umas notas breves.
Para uma exposição que se intitulava de Diálogos de Vanguarda, onde estão os textos de apoio que explicam esses diálogos, e as razões que levaram a escolher determinadas peças de outros autores, diga-se onde o confronto nunca foi procurado, antes um certo mimetismo.
Porque se faz um catálogo que custa mais de 70 euros, e não existe um folheto barato sobre a exposição para que o público/povo possa perceber a exposição, as obras e o autor?
Não se percebe o percurso expositivo da exposição e apenas se entende um percurso cronológico a partir da entrada. E sobretudo não se compreende como é possível numa exposição sobre Amadeo começar com uma escultura "dourada" de Brancusi que de Amadeo a seu lado apenas tem uma fotografia ampliada e um lettering que diz "je tra-vaille"...
Em outras circunstâncias e noutro tempo, uma expressão semelhante foi utilizada como forma de calar as opiniões críticas, será que é isso que o comissariado e a organização gostariam de gostar?
O facto, é que Amadeo em apenas trinta anos de vida, construiu um discurso de modernidade único em Portugal a par com o que de melhor existiu a nível europeu. Com esta exposição perdemos Todos uma oportunidade de prestar a homenagem que Amadeo merecia.
Concordo em absoluto com o comentário. Poderia parecer que a "comissária" nunca tivesse visto uma exposição retrospectiva dum pintor - o que não é certamente o caso. Seria que viu a grande exposição em Paris sobre a obra de Dali há uns anos, ou a retospectiva de Picasso na mesma cidade? ou a retrospectiva de Ensor em Bruxelas? Já para não falar doutras exposiç~ies que houve na Gulbenkian. Nesta exposição não há qualquer principio organizador fundamentado numa ideia. Se há um objectivo didático não é vislumbrável: nada está escrito em paineis que possa esclarecer o percurso do pintor, as temáticas, a razão da escolha dos pintores seus contemporâneos. Em síntese - está ausente qualquer esclarecimento sobre a obra e o seu tempo. Apesar de haver salas temáticas dum modo geral os quadros parecem ter sido colocados ao acaso (ou quase). É ume exposição "afásica" e "acéfala". Sem "inteligência" nem inteligibilidade. O único que é excepcional é o próprio Amadeo e a sua obra. Infelizmente continuamos provincianos e a ser tratados como tolos!
Exactamente MLF!
Ainda assim e ao contrário do que diz, julgo existir um "principio organizador fundamentado numa ideia" mas... não concretizado.
Também não vou tão longe no que diz respeito à falta de "inteligência" por trás da exposição, ela existe e está lá, este modelo de exposição não tem é o rasgo visual que as obras de Amadeo exigem e merecem.
mister
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